O Carnaval (Rio de Janeiro e não só) a que as televisões deram tanto relevo, como de costume aliás, trouxe-me à memória Edgar Poe, que se definia a si mesmo como um louco que de vez em quando “acordava” na realidade, como alguém que abre a janela para ver como está o tempo e, porque não gostava do que via, interpreto eu, retornava ao mundo da loucura. Não há dúvida que, no curto prazo, é sempre mais apetecível pairar sobre o mundo, sem preocupações de maior até ao dia (e há sempre esse dia) em que se acorda para a vida como ela é e não como gostaríamos que fosse. Estou a pensar nas loucuras pessoais e colectivas, nos sonhos que da realidade trazem apenas desejos frustrados e paixões incontidas, assim como nas futilidades e superficialidades, as primeiras para nos enganarem e nos enganarmos, e as segundas para fugirmos da nossa autenticidade, escondendo-a em vidas que as máscaras do Carnaval tão bem interpretam. Aquilo que era uma espécie de “brincadeiras” ingénuas e folgazonas, tipo despedida antes de entrar nos rigores da Quaresma, transformou-se em loucura, em muitos casos, de mau gosto, para não usar expressões mais fortes.
Nunca o Carnaval se afastou tanto do seu espírito inicial e criou um fosso tão grande em relação à Quaresma ao ponto de já nada ter a ver uma coisa com a outra. O que é pena. Hoje nada mais é que “máscara” sob a qual se esconde muito vazio em nudez exterior (que em si mesma só mostra nudez e pobreza interiores), escape da realidade e evasão para o mundo da ilusão, sabendo embora que é por pouco tempo. Como quem diz “enquanto o pau vai e vem, folgam as costas”. Tudo isto me leva a pensar na necessidade da Quaresma, não tanto pelo ângulo da penitência e do jejum, mas pelo que ela pode significar de reflexão pessoal (“Lembra-te, ó homem que és pó”), de conversão de vida (“Arrepende-te”), de oferta gratuita (“O Reino de Deus está próximo”), de experiência de deserto (Oração e tentações) e da vida como caminho e a caminho (Êxodo) até que Deus venha ao nosso encontro e nós ao seu.
A Quaresma, recolhendo na sua simbologia litúrgica a “recordação” da caminhada do povo hebreu pelo deserto dentro, cheia de história e histórias (e até de mitos), onde não faltam privações, fome e tentações, lutas, desânimos e cansaços, é também campo de experiências únicas e gratificantes. O profeta Oseias, perante o desvario do seu tempo, pedia a Deus que voltasse a conduzir o povo para a experiência do deserto como forma de lhe reconquistar o coração; Elias, desanimado e a fugir de si, é no deserto que encontra o alimento necessário para regressar a si e ao trabalho da missão. Cristo também fará a sua experiência de deserto; na visão linear do evangelista Marcos, é Alguém que vem de Deus, que “mergulha” (baptismo) na realidade do seu povo e “entra” (deserto) na sua história de êxodo para, depois, começar a vida pública até Jerusalém e dali ao Calvário, regressando, “ressuscitado”, para junto do Pai. É vida em caminhada pelo deserto da vida humana; é vida em êxodo de Deus para Deus, caminhando connosco e na nossa realidade. Gosto desta visão pelo que ela nos pode ajudar a perceber a vida como caminho, a existência humana como deserto e a forma como viver tanto a existência humana como o seu caminho, sabendo de antemão que a vida cristã se realiza autenticamente sempre dentro e por dentro da vida e da realidade humanas. Onde há um pouco de tudo, desde tentação, fome, miséria, dificuldades e hesitações, descrença, pessimismo e desânimo, fugas, paixões e evasões… e até muito pecado. Mas também onde Alguém espera sempre, quer para perdoar, quer para abraçar como “aquele” Pai da parábola do Filho Pródigo. Parábola que, precisamente por ser parábola, nunca é de ontem. É sempre de hoje e no hoje das nossas vidas.
Começamos a recta final da Quaresma para nos abrirmos ao dom do Amor. Toda a Quaresma foi preparação para que o nosso coração se abra ao amor de Jesus, que nos vai oferecer três facetas da sua vida, do seu amor, do seu fogo divino que quer incendiar os nossos corações. Importa deixar-nos tocar, incendiar pelo amor de Jesus. Olhando o mundo à nossa volta, sentimos todos que morremos gelados, pois não temos o fogo do amor em nós, nas famílias, nas estruturas da sociedade. Que loucura de mundo: guerras, ódios, crimes, corrupção, violência, destruição da vida e das pessoas, até de maravilhosas e antiquíssimas obras de arte com milhares de anos. Acção criminosa e devastadora. Só o amor nos pode ajudar, curar, salvar. A civilização do amor, como nos ensinava o Papa São João Paulo II, nasce do Coração de Cristo e passa pelos nossos, incendiados pelo fogo d’Ele.
Saibamos renovar a fé e o encanto no amor de Jesus Eucaristia, alimentar-nos d’Ele, viver a Ceia como algo central, vital, como tesouro e pérola. Amor eucarístico de Jesus que quer vir a nós, transformar, cristificar os nossos corações. Faz-Se alimento para ficar em nós e nós n’Ele. Que loucura divina de um Deus que Se dá. Precisamos de participar nessa “escola de amor”, onde Jesus Se dá, Se entrega, Se faz alimento para permanecer em nós e ser fonte de unidade, de comunhão, de dádiva, de paz, de concórdia, de destruição de egoísmos, de vendilhões que povoam o nosso interior, de ídolos que nos acorrentam e destroem a vida, o dom, a entrega generosa aos outros. O mundo precisa da vida eucarística, do Pão do Céu, de Jesus feito alimento, do amor eucarístico que vai até ao extremo de Si mesmo na entrega total, radical. E, dentro de nós, vai-nos incendiando a vida e o coração do fogo que Ele é e que veio do Céu. Não há outra solução para transformar o mundo à nossa volta, pois só Ele nos ensina a amar, a ser paz, amor, justiça, verdade, dom aos outros.
A loucura do amor apaixonado que O leva a ser Cordeiro que Se deixa matar e imolar é outra escola de amor. O mundo à nossa volta precisa de olhar para o Crucificado para perceber o amor do Bom Pastor que foi até à morte e morte de Cruz, que soube pedir ao Pai perdão para os que O matavam, que soube aceitar ser vítima e derramar o seu sangue para remir, para dar paz, para ser salvação e graça. No meio da violência, do crime, há Cristo Crucificado que continua a sua paixão salvadora e que nos quer identificados com Ele, para amar como Ele e sermos semente de um mundo novo. Só no seu Coração trespassado, só nas sua Chagas, cicatrizes do amor com que nos amou, só no seu sangue encontramos a fonte da vida e da paz, da justiça e do bem que pode transformar o mundo à nossa volta. Contemplemos com amor o Crucificado e fiquemos a aprender com Ele a ser grão de trigo que morre para gerar vida nos outros, no seio da família, da sociedade. O Crucificado é fonte e escola de amor misericordioso que, pelo fogo do perdão, quer restabelecer paz e comunhão. Como o mundo precisa desta graça imensa e maravilhosa.
O mundo precisa de descobrir o Ressuscitado no auge do amor que é vida nova, que é fonte de paz e de alegria, que é graça de missão evangelizadora, que é o fogo divino a incendiar o mundo a partir da Páscoa, da vida do Ressuscitado, Vivo e Glorioso, sempre no meio de nós, sempre connosco, sempre vida das nossas vidas. Presente na Palavra, na Igreja, na Eucaristia, no Irmão, presente para nos aquecer o coração com o seu fogo divino, para nos cristificar e divinizar. Como o mundo à nossa volta precisa desta descoberta para que acabem ódios, corrupções, violências, crimes, promiscuidades, profanações, destruição da vida e do amor, da beleza e da paz. A força do Ressuscitado é capaz de realizar esse prodígio divino. Ele quer incendiar com a sua vida divina os nossos seres para podermos testemunhá-Lo. Que desafio maravilhoso. Como o mundo à nossa volta precisa desta graça!!! Vamos ressuscitar para ser fogo que incendeia o amor?
Estamos na semana em que celebramos o 2.º aniversário do Pontificado do Papa Francisco. Foi eleito no dia 13 de Março de 2013 e a sua entrada solene teve lugar no dia 19, festa de S. José, esposo de Maria.
Recordo que o Papa Bento XVI apresentou a sua renúncia no dia 11 de Fevereiro, festa de Nossa Senhora de Lurdes e Dia Mundial do Doente: «Depois de examinar reiteradamente a minha consciência perante Deus, cheguei à certeza de que, pela idade avançada, já não tenho forças para exercer adequadamente o ministério petrino».
As primeiras reacções, na sua maioria, foram de surpresa e espanto, quase que interrogando-‑nos se estávamos a ouvir bem e se não seria para tomar as palavras de Bento XVI em sentido figurado. Dentro e fora da Igreja Católica, passou-‑se, em geral, a um coro de aplauso pela lucidez e coragem do Papa Ratzinger. O último Papa que tinha resignado foi Gregório XII em 1415, em circunstâncias muito especiais, pois havia três pretendentes a serem o sucessor do apóstolo S. Pedro, no tempo do Grande Cisma do Ocidente.
A resignação anunciada passou a efectiva às 20 horas do dia 28 de Fevereiro de 2013, com Bento XVI retirado para Castel Gandolfo. Não vou deter-me a falar do que aconteceu em seguida com a convocação do Conclave de Cardeais e a eleição, não segundo a lógica jornalística das previsões, de Jorge Mário Bergoglio para sucessor de S. Pedro como Bispo de Roma e Pastor da Igreja universal.
Quero sublinhar a mais-valia, para a Igreja e para o mundo, que tem sido a experiência de conviverem dois Papas no Vaticano: Bento XVI como Papa Emérito e Francisco como o nosso actual Papa. É felizmente patente e notória a boa relação entre ambos, com indesmentível apreço mútuo. Com grande edificação geral, incluindo de não católicos, temos verificado que cumprem o que nos recomenda São Paulo: «Sede afectuosos uns para com os outros no amor fraterno; adiantai-vos uns aos outros na estima mútua» (Rm 12, 10).
As visitas, os convites para aparecer em celebrações públicas, as referências de apreço e as saudações que ultrapassam as regras protocolares e mostram afecto têm sido acções de evangelização, que calam fundo nos corações de todos, independentemente da ideologia ou religião.
É claro que o estilo de viver a missão de sucessor de Pedro é bem diferente entre Bento XVI e Francisco. Basta citar a origem germânica do primeiro e a procedência sul‑-americana do segundo, para além de temperamentos e gostos pessoais. Mas também isto tem sido uma lição: é desejável e possível estabelecer relações de colaboração e amizade com quem é diferente de nós. As nossas diferenças não estão destinadas a se oporem ou anularem, mas devem ser um enriquecimento mútuo. A convivência dos dois Papas, Bento XVI e Francisco, tem enriquecido a Igreja e edificado um mundo melhor. É fácil de prever que esta fórmula binária terá futuro no exercício do ministério petrino.
Há cerca de 100 milhões de pessoas que, neste momento, estão a ser perseguidas e massacradas simplesmente pelo facto de serem cristãs. Só em 2014, foram mortos quase cinco mil cristãos. O fenómeno verifica-se um pouco por todo o mundo, mas tem uma maior incidência em países como a Coreia do Norte, a Síria, o Iraque e a Nigéria.
Segundo o relatório anual da Open Doors, grupo internacional de apoio a cristãos, na Coreia do Norte, estima-se que haja entre 200 a 400 mil cristãos, dos quais 70 mil estão presos em campos de trabalho forçado, onde são torturados.
Síria, Iraque e Nigéria ocupam também lugares cimeiros nesta lista de países em que a violência contra cristãos é uma constante, assim como as restrições oficiais ou informais ao direito de exercerem a sua fé e de gozarem das mesmas liberdades civis que outros cidadãos.
O relatório da Open Doors aponta o fundamentalismo islâmico como a maior ameaça para os cristãos em 18 dos 20 países considerados. Na Síria e no Iraque, o terror instalou-se com o avanço do auto-proclamado Estado Islâmico (EI). Naqueles territórios, centenas de milhares de pessoas, a maioria cristãs, foram expulsas das suas casas, outras tiveram de se refugiar em países vizinhos, outras ainda foram raptadas, maltratadas e mortas.
Às mãos do Estado islâmico, somam-se episódios de horror e atrocidades sem precedentes. "As pessoas da Cruz" são o seu principal alvo. Depois das notícias de decapitações, pessoas queimadas vivas, raptos e tortura, nos últimos dias veio a público o leilão de meninas cristãs como “escravas sexuais”.
Ao todo, de acordo com dados de especialistas da Universidade de Oklahoma, o número de mulheres raptadas e mantidas em cativeiro pelos radicais do Estado Islâmico ronda os 7 mil, grande parte, crianças e jovens. O seu destino, para além da violência sexual a que estão sujeitas, é a venda no mercado negro.
Os horrores somam-se e seguem-se perante o silêncio, o medo e a inércia do resto do mundo. Independentemente da sua fé, os cristãos, assim como os yazidies, uma minoria religiosa do Curdistão também fortemente atacada pelo EI, são seres humanos, o que, desde logo, deveria motivar uma intervenção concertada de vários países para pôr fim a estas atrocidades.
Aquando dos ataques ao World Trade Center, em Nova Iorque, e à estação de metro, em Madrid, reivindicados pela Al-Qaeda, discutia-se a dificuldade de os Estados Unidos da América e do Ocidente lidarem com o terrorismo, já que se tratava de um inimigo sem rosto. Mas o Estado Islâmico, que actua na mesma linha jihadista, tem rostos e alvos bem identificados. Não se percebe, por isso, a passividade do Conselho de Segurança da ONU perante a violência e a expansão deste grupo fundamentalista que não conhece limites para converter o mundo ao islão.
O Papa Francisco, um apologista da paz, o primeiro a defender que a guerra não se resolve com a guerra, já defendeu publicamente a necessidade «urgente» de enfrentar o fanatismo e o fundamentalismo do Estado Islâmico.
Como dizia Edmund Burke, «para que o mal triunfe, basta que os bons não façam nada». Os cristãos de vários países estão a ser dizimados porque as organizações inter-governamentais constituídas para garantir a segurança e tantas outras pessoas de boa vontade se mantêm em silêncio e sem fazer nada.