Tudo começou com uma aparentemente simples abordagem de rua, sobre um ponto de interesse para uns momentos de descontração e diversão depois do jantar. Pouco habituada a estas andanças, pouco pude adiantar, além da zona de localização de possíveis estabelecimentos que, achava eu, correspondiam às expectativas. Mas depressa percebi que as expectativas e o interesse da conversa tinham outros objetivos e de imediato despachei, literalmente, o assunto.
Este episódio, concreto, deixou-me algo inquieta, levando-me a pensar nos princípios, ou na falta deles, em que muitas pessoas baseiam as suas vidas... sem se preocuparem minimamente com valores ou com o respeito pelo outro.
A pessoa em causa estaria provavelmente em viagem de negócios ou trabalho, numa localidade que não seria a sua. Teria família? Não sei. Se tinha, era muito mau que quisesse aproveitar uma deslocação para satisfazer interesses pessoais, que quebrassem o compromisso assumido num projeto de vida comum. Se não tinha, era mau na mesma, pelo modo leviano como se pretendia cativar alguém para momentos de mera diversão sem um conhecimento mínimo da pessoa com quem se estava.
Este tipo de situação, provavelmente, é mais frequente do que aquilo que seria desejável. Porquê? Porque vamos alimentando uma sociedade baseada no ter, na diversão, no imediato e não no ser, no conhecimento profundo do outro. Uma sociedade que valoriza mais o ter o telemóvel de última geração (abro aqui um parêntesis para me questionar sobre a razão por que algumas crianças do ensino pré-escolar já levam telemóvel para o estabelecimento de ensino que frequentam...) e o passar umas férias num local paradisíaco e que vai aprovando consecutivamente leis que denotam uma falta de respeito pelas pessoas e pela vida, desde a conceção à morte natural.
Felizmente, ainda há quem vá remando contra a corrente. Ou que pelo menos o vá tentando. Não é fácil!
Não é fácil responder “não”, por exemplo, a um pedido de uma criança de 11 anos para ter um telemóvel (é dos poucos da turma que não tem...) justificando com um simples “não precisas”. Não é fácil negar um telemóvel para mais um tempo de “joguinhos” enquanto se espera num consultório médico, como foi o caso daqueles adolescentes que se sentaram no chão do consultório com o telemóvel a carregar, porque o vício do jogo era mais importante que conversar com a mãe, que acabou por dormitar na cadeira enquanto esperava o início da consulta.
Não é fácil também dizer “não” quando alguém pede o smartphone dos pais para jogar durante um tempo de espera num restaurante, porque pensa que mais importante do que estar colado ao pequeníssimo ecrã é aproveitar aqueles momentos em família (cada vez mais raros hoje em dia) para conviver e conversar.
Não é fácil gerir a educação dos mais novos, obrigando-os por exemplo a provar um pouco de cada comida (o “mínimo obrigatório” como ouvia em criança...), de modo a criar hábitos de alimentação saudáveis.
Não é fácil sair do conforto da casa, no frio e na chuva do inverno... ou no calor tórrido do verão, para levar os mais novos a atividades que os ajudam a partilhar brincadeiras e ideias e que os descentram dos interesses habituais dos jogos eletrónicos ou da televisão.
Mas é fácil acreditar que estas atitudes são um investimento que vale a pena e vai dar frutos no futuro; que vai contribuindo para a construção da personalidade dos homens e mulheres de amanhã, enquanto pessoas que acreditam na vida e valorizam a pessoa humana em todas as fases da sua vida, enquanto pessoas que ainda procuram princípios para a vida e se preocupam com valores ou com o respeito pelo outro. Enquanto pessoas que não farão abordagens de rua levianas durante uma viagem de negócios ou de trabalho.
Este é o caminho para que as coisas vão mudando...
Começou na segunda-feira, dia 18, o oitavário pela unidade dos cristãos. Somos todos convidados a rezar pela unidade das Igrejas cristãs. E não é só a Igreja Católica que propõe este oitavário, mas tantas outras Igrejas cristãs unem-se nesta iniciativa de oração e diálogo. O apelo que este ano nos é deixado é que nos recordemos que «somos chamados a proclamar os altos feitos do Senhor» (cf. 1 Pe 2, 9). Todos nós cristãos, católicos ou não católicos, somos chamados a proclamar ao mundo as maravilhas que o Senhor operou na nossa vida.
São João põe na boca de Jesus esta oração: «Pai santo, Tu que a Mim Te deste, guarda-os em Ti, para serem um só, como Nós somos!» (Jo 17, 11). Todos os cristãos, independentemente da Igreja à qual pertencem, defendem que o corpo de Cristo é um só e que não pode ser dividido. No entanto, olhamos à nossa volta e sabemos que existem cristãos católicos, protestantes e ortodoxos, só para citar as principais divisões, porque na verdade cada um destes grupos subdivide-se muito. Todos estamos de acordo que a Igreja de Cristo tem dentro de si as feridas da divisão e que estas são um atentado contra o nosso chamamento à unidade.
Este escândaloda divisão do corpo de Cristo que é a sua Igreja é um sinal contrário daquilo que queremos anunciar: Jesus Cristo, Deus Encarnado, morto e ressuscitado por nós destruiu a morte. Fez-Se um de nós para nos anunciar um Reino de justiça e de paz. A sua Igreja, desde sempre, desde os inícios que sofre com a divisão. Esta, no entanto, faz-nos tomar consciência de que, de facto, ainda não somos um, como o Filho e o Pai são um.
Este escândalo reflete um mundo dividido dentro de si mesmo, um mundo marcado por tantos conflitos e mortes. Nós, que não somos do mundo mas estamos no mundo (cf. Jo 17, 11-18), trazemos tantas vezes este espírito de divisão para dentro do corpo de Cristo. Tantas vezes parecemos estar tão mais preocupados em mostrar que temos razão do que em acabar com os conflitos; às vezes, parece que estamos mais interessados em defender os nossos interesses individuais do que em anunciar Jesus Cristo ao mundo. Sem que nos apercebamos, acabamos por arrancar membros ao corpo de Cristo.
Com o Concílio Vaticano II, tomamos consciência que estas feridas são escandalosas e são impedimento para que tantos homens e tantas mulheres possam realmente aderir ao corpo de Cristo. Se um povo está dividido em si mesmo fica devastado (cf. Mt 12, 25). Não pode sobreviver. Todos os cristãos, católicos ou não, procuram seguir o Senhor, mas às vezes, mesmo que não tomemos consciência disso, transmitimos uma imagem de divisão e separação que não é compatível com Jesus.
O Papa Francisco tem dito repetidas vezes que o diálogo com as outras confissões cristãs é uma prioridade para a Igreja. Ele não teve problemas em convidar um Patriarca Ortodoxo, o Metropolita Zizioulas, para os relatores na apresentação da Encíclica «Laudato Si», ou em afirmar que o Papa copta Tawadros, sucessor de São Marcos em Alexandria, é um místico. O Papa está a dizer-nos que aqueles que são diferentes de nós podem até causar-nos dúvidas, mas que que a única via para encontrar a paz e a unidade é através da amizade e do diálogo. Um exemplo muito bonito disto é a mensagem vídeo que o Papa Francisco enviou ao congresso americano dos Pentecostais em que se refere a um bispo dessa confissão cristã como seu «irmão, bispo seu irmão» e amigo.
Numa outra entrevista diz que sofre por não poder celebrar a eucaristia, sinal de união e comunhão, com tantos homens e mulheres amigos em Cristo, porque ainda não conseguimos ultrapassar as feridas e as barreiras que nos dividem.
Este oitavário de oração pela unidade dos cristãos é uma boa oportunidade para pedir ao Senhor que nos ajude a desfazer as barreiras que nos separam uns dos outros. Não só dos nossos irmãos ortodoxos ou protestantes, mas também dos nossos irmãos da nossa paróquia ou do nosso movimento com os quais ainda não nos sentimos como parte do mesmo corpo. Somo chamados por Jesus a formar, com Ele como cabeça e com todos os nossos irmãos e irmãs, um só corpo e um só espírito e assim proclamar as maravilhas que o Senhor faz!
Muito mais do que se estava à espera. Como é próprio do agir de Deus, que nos surpreende com os seus dons quando, ao colocarmos nas suas mãos os frutos do nosso trabalho e do nosso esforço, deixamos que seja Ele a fazer a sua parte.
A recriação do Apostolado da Oração, que tem vindo a ser feita nos últimos anos, conheceu, no passado dia 6 de Janeiro, um impulso muito concreto, com o lançamento de O Vídeo do Papa (www.ovideodopapa.org). A iniciativa, do Apostolado da Oração Internacional, apresentado oficialmente como Rede Mundial de Oração do Papa, divulgou o primeiro de uma série de vídeos mensais com o próprio Papa Francisco como protagonista, falando e pedindo orações pela intenção Universal do mês de Janeiro: “Para que o diálogo sincero entre homens e mulheres de diferentes religiões produza frutos de paz e de justiça”.
Resultado: em apenas 48h após o lançamento, O Vídeo do Papa, publicado no Youtube e nas várias plataformas do projeto (site, facebook e twitter), em 10 idiomas, teve mais de 2 500 000 visualizações e foi falado em mais de 450 meios de comunicação em todo o mundo, televisões, rádios, jornais e sites.
Não é novidade que o Santo Padre fale das suas intenções de oração. Aliás, ao longo dos 170 anos de história do AO, os vários pronunciamentos dos Papas acerca da missão específica desta obra foram sempre motivo de entusiasmo para todas as pessoas que faziam parte desta Rede Mundial de Oração, disponíveis para oferecer a própria vida quotidiana em favor das grandes preocupações do mundo e da missão da Igreja. Mas a novidade deste projeto e seu surpreendente impacto está no modo usado para o fazer: um vídeo pensado e realizado de uma forma profissional e extremamente cuidado.
Não sendo aqui o lugar para fazer uma análise detalhada do que está por trás da edição de um vídeo desta qualidade (a mensagem em si, a iluminação, a escolha das imagens, a música…) gostaria de chamar a atenção para alguns pormenores do vídeo que fazem dele um meio inexcedível não apena para comunicar um tema de oração sobre a intenção do Papa, mas também para criar um impacto que toca a vida e faz pensar sobre o modo como se imagina e leva à prática esta intenção.
A sucessão das diferenças entre as várias religiões é acompanhada pela voz de Francisco que vai fazendo progredir a ideia, já sublinhada por ele noutras ocasiões, de que “quem está seguro das suas convicções não tem necessidade de se impor ao outro: sabe que a verdade tem a sua própria força de irradiação” (Discurso num encontro de responsáveis religiosos em setembro de 2014). O desenrolar desta pequena narrativa culmina com a expressão de um poderoso acordo entre todos, com um “Creio no Amor” dito por cada um, assumindo as diferenças próprias, mas realizando um verdeiro encontro em vista do bem de todos. A imagem final fica na memória e questiona o coração: há tantas pessoas diferentes à minha volta, que vivem e pensam as coisas de um modo diferente do meu (não falando apenas de diferentes religiões) … isso é uma riqueza a ter sempre presente. Mas porque é que as diferenças são sempre vistas como divisão e motivo de conflito? Não será precisamente o encontro sincero destas diferenças que constrói a paz? A sensação com que se fica depois de ver o vídeo é, na verdade, a paz e uma motivação forte a construir algo juntos para o bem de todos. Um desafio para a vida concreta!
Alegremo-nos por este modo tão desafiador de rezar e, sobretudo, viver o tema das intenções, unidos ao que o Papa Francisco tanto deseja para o mundo. Na Rede Mundial de Oração do Papa – o Apostolado da Oração.
Assinalando um ano sobre o massacre levado a cabo por fundamentalistas islâmicos na sua sede, em Paris, o jornal Charlie Hebdo publica, na primeira página, uma suposta caricatura de Deus (um velho barbudo, de olhar alucinado, com dentes podres, uma túnica ensanguentada e uma metralhadora à cintura) acompanhada do título 1 an après – L’assassin court toujours (Um ano depois – o assassino continua à solta). O assassino, como se depreende, é Deus.
Não vou discutir a estupidez da caricatura. Afinal, o Charlie Hebdo não é conhecido pela inteligência das suas críticas aos crentes religiosos, antes pelo fundamentalismo fanático das mesmas. Digo «crentes religiosos» propositadamente. Na verdade, a «religião organizada» que o editorialista do Charlie Hebdo diz ser o alvo do jornal é uma abstração – e a religião «não organizada» que, pelos vistos, já não lhe merece crítica é uma abstração ainda maior. A «religião» não existe. Existem homens e mulheres crentes que vivem a sua fé de um modo determinado. São estes homens e mulheres que o Charlie Hebdo agride ou pretende agredir.
Olhando para a caricatura do Charlie Hebdo é fácil ver que o fundamentalismo não é característica apenas de alguns crentes religiosos, mas faz parte do quotidiano de crentes de outro tipo. E não vale a pena dizer que há fundamentalismos bons e fundamentalismos maus. Vale, sim, a pena perguntar se o fundamentalismo antirreligioso, dados os meios e a oportunidade, não levaria alguém a fazer o mesmo que fizeram os extremistas islâmicos na sede do Charlie Hebdo, há um ano... Para se ter uma resposta, basta recordar a brutal história do século XX e dos seus totalitarismos ateus.