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Blogue do Apostolado da Oração

Um Rebuçado, uma Nota, uma Citação

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Vamos ao rebuçado. Apetece começar assim: Era uma vez um rebuçado, com o título pomposo de Dr. Bayard, caído no cesto do ofertório de uma eucaristia dominical, que não conseguiu passar despercebido no meio dos cêntimos e das moedas de um e dois euros. Parecia estar fora do lugar mas não estava. Contava a história de um gesto e de uma “velhinha” simples, e, pela forma de vestir, pobre (foi-me dito) que, ao passar o cestinho das esmolas, meteu a mão ao bolso, onde não encontrou mais que aquele rebuçado. Era o que tinha para a partilha fraterna daquele ofertório. Admirei a simplicidade e a doçura do gesto. Há gestos que impressionam, e este impressionou-me quando a senhora que fizera a recolha do ofertório trouxe o cesto para a sacristia e me contou a história de como aquele Dr. Bayard fora parar ali. O pensamento fugiu para o templo de Jerusalém e para aquela viúva e aquela moeda envergonhada ao ponto de levar o Senhor a chamar os discípulos para sublinhar o gesto em si mesmo, pobre por fora, mas tão rico por dentro, onde as coisas têm valor e dizem mais de nós do que tudo o resto. Tive desejos de conhecer a pessoa, o que as circunstâncias não permitiram. Convencido de que o gesto merecia ser relevado, aqui o deixo neste espaço do AO. Gostaria que fizesse parte do “mundo à nossa volta”.

 

A Nota. Esta diz respeito à celeuma sobre os contratos de associação, o ensino público e privado de que fala a Constituição que nos governa e desgoverna, e a sua liberdade de escolha como se ensino e transmissão de conhecimentos, por um lado, e educação e formação de pessoas, por outro, fossem a mesma coisa. Julgava eu, pelos vistos erradamente, que o conceito de “Partido Educador do Povo” (entenda-se partido como cada um quiser; eu sublinho a palavra educador) tinha passado para as calendas gregas. Parece que não. A própria Constituição, feita sob a tutela do Conselho da Revolução e sem nunca ser referendada, enche a boca com “liberdades, garantias e direitos”, mas obriga-nos “livremente” a caminhar pelo estatismo dentro (ou é mesmo socialismo?), cantando alegremente “Uma gaivota voava, voava… Somos livres, somos livres…”. E assim vamos alegremente fazendo as nossas escolhas “livres” entre o ensino laico desta escola e o ensino laico daquela outra, por sua vez, estatal também. Ensino católico? Que o paguem; Educação cristã? Que a paguem. E assunto resolvido. Talvez esteja; só fica por resolver toda a ambiguidade entre ensino e educação, ambiguidade patente na própria linguagem. Enquanto a Constituição fala do direito ao “ensino” universal, tendencialmente gratuito, etc., o governo tem um ministério que o governa mas pondo-lhe à frente um ministro chamado da “educação”. Tudo dito. Tantas liberdades onde apenas falta a liberdade que interessa. É como estar dentro de uma casa onde tenho todas as “liberdades, direitos e garantias” possíveis e imagináveis, só não posso sair de casa. Tenho todos os direitos ao ensino, só que este tem de ser laico e estatal.

 

A Citação. A citação é tirada da Exortação Apostólica “A Alegria do Amor” (n. 84) do Papa Francisco: “O Estado oferece um serviço educativo de maneira subsidiária, acompanhando a função não-delegável dos pais, que têm o direito de poder escolher livremente o tipo de educação, acessível e de qualidade, que querem dar aos seus filhos de acordo com as suas convicções”. O nosso problema não se coloca ao nível do ensino. Aqui pouca liberdade há, visto que todos os estabelecimentos, sejam eles estatais, privados ou corporativos, têm de obedecer aos conteúdos curriculares; coloca-se, sim, ao nível da educação. Ou julgam que os pais escolhem a escola (quando podem) pelo ensino curricular? Não será pelo que vai para além disso, ou seja, o ambiente da escola, a disciplina, a segurança e o tipo de educação? Neste sentido, a citação referida pode bem ser um estímulo para os pais e educadores continuarem a sua luta na defesa daquilo em que acreditam.

 

A. da Costa Silva, s.j.

 

PADRE E PEREGRINO: UM TESTEMUNHO

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Neste mês de maio, parece que o mundo à nossa volta se centra em Fátima. É surpreendente o número de peregrinos que vêm a pé a caminho do Santuário, de Portugal inteiro. Este ano calcularam que pelo menos 36 mil pessoas caminharam como peregrinos a pé para Fátima. Eu meti-me nesta maravilhosa odisseia. Estou solidário e em comunhão com muitos, com todos os que fazem esta aventura de amor.


Já há dezoito anos que acompanho, quase todo o tempo e fazendo o percurso a pé, de Lisboa a Fátima, uma peregrinação de muitos peregrinos. Este ano éramos 240 e, além da chuva, sentimos bem a graça que ia caindo do Céu sobre nós. Tive a alegria de ter, nalguns dias, alguns sacerdotes que vieram ajudar a atender as pessoas e a confessar, a celebrar o sacramento da alegria do perdão.


Com mais de duzentas pessoas é preciso uma logística e uma preparação que alguns responsáveis fazem com muito carinho, amor e dedicação. Tudo está calculado e preparado; desde as refeições, as dormidas, o itinerário, as paragens para descanso. Eu sou padre mas também peregrino e parece que Nossa Senhora me pega ao colo e nem sequer me deixa ter uma bolha ou doer muito os músculos. O mais importante, porém, é a missão de ajudar e apoiar espiritualmente aquele “rebanho” de 240 pessoas. Mas Deus ajuda e Ele mesmo faz maravilhas, verdadeiros milagres da graça.


O caminho é diversificado. Retas enormes, algumas com mais de seis quilómetros, subidas duras e que nos obrigam a puxar pelos músculos, paisagens belas, como a planície cheia de videiras já com muitas folhas. Campos e cidades, vistas soberbas que nos fazem desfrutar a beleza de Deus através da natureza. Pequenas aldeias onde os habitantes nos saúdam com carinho e nos pedem que em Fátima rezemos por eles. Tudo nos ajuda a tentar encontrar Deus em tudo e tudo em Deus.


Depois do pequeno almoço, há um momento de reflexão para dar a todos uma pequena ajuda espiritual para o dia, explicando a intenção pela qual queremos centrar nossas súplicas e a virtude que queremos pedir e viver. É o pontapé de saída. Muitos, só ou em grupo, começam a rezar ou a cantar terços, às vezes muitos, até ao fim do dia. E é assim, um dia após outro. Tanta oração vai dando muito fruto. Deus vai fazendo seu caminho dentro de cada um e Nossa Senhora vai ajudando.


Cada dia temos o momento alto, o melhor de todos, na celebração da Eucaristia, em que não falta a ajuda e o entusiasmo do coro e de cânticos que nos elevam. Há também caminhadas em que todos guardamos silêncio e caminhamos em oração, reflexão, contemplação. Há muito diálogo, partilha de vida e de experiência. Somos uma verdadeira família que vai caminhando e fazendo um Retiro espiritual de Lisboa a Fátima. Há lágrimas de alegria e conversão. Há dom da graça que leva muitos a “converterem-se”, pois já não se confessavam há muitos anos. Alguns dizem que nem sabiam rezar o terço, mas acompanhados e ajudados lá começam e, nos últimos dias, já rezam cinco, seis ou mais, de manhã à noite. Muita oração, alguma penitência, muitas conversões. Muita experiência do amor de Deus, muitos desejos de vida mais santa. Nossa Senhora vai ajudando. Tudo é graça.


E eu, como peregrino que caminha a pé com aquele grupo maravilhoso, alguns com pouca fé, outros sem serem casados pela Igreja, mas querendo com Maria, a Mãe, caminhar para Jesus, lá vou atendendo e confessando o dia inteiro. Que maravilha. Quantas iluminações de Deus, quanta força do Espírito, quanta proteção de Nossa Senhora. E tudo bem programado e preparado por uma equipa organizadora, com carro de apoio, com momentos de alegre partilha, com “especialistas” que cuidam das bolhas, das feridas, dos mais cansados ou abatidos. Cresce a amizade, a família de peregrinos, a intimidade, a ajuda entre todos, a atenção aos que se feriram, aos que se sentem mais tristes, aos que precisam de mais apoio.


Tenho a oportunidade de fazer alguma alocução sobre temas da vida, da fé, da espiritualidade. Quase a chegar a Fátima, na longa reta de Minde, lá brota o último “sermão”: 1º – A peregrinação começa amanhã, na vida de casa, de escola, de emprego: aí vamos viver o que aqui ouvimos e rezámos, viver a sério nossos compromissos com a Mãe. 2º – Rezar o terço todos os dias. Não basta ter aqui rezado dezenas durante estes seis dias. 3º – Uma vida sacramental cuidada, com Missa dominical e confissão frequente, para os frutos da peregrinação continuarem vivos e fecundos. 4º – Reunião todos os dias 13 de cada mês para nos vermos e rezarmos juntos, para soprar as brasas e deixar incendiar os corações.


No final das cerimónias em Fátima temos uma reunião de avaliação, de partilha das experiências espirituais. Quantas graças, quantas maravilhas. Quantos dons. Partimos com o coração e a alma cheios. Bendito seja Deus. E ficamos a desejar voltar para o ano. E pensamos que muitos padres podiam ajudar grupos de peregrinos a fazer uma verdadeira peregrinação. Que as paróquias se deviam movimentar para ter esta bela e frutuosa experiência com o seu pastor.

 


Dário Pedroso, s.j.

UM AUXÍLIO

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«O Senhor Deus disse: “Não é conveniente que o homem esteja só; vou dar-lhe uma auxiliar semelhante a ele.» (Gen 2,18)

O livro do Génesis refere-se à criação da mulher com o termo «auxiliar»; tal termo pode provocar em nós alguma dificuldade, pois trata-se de um termo, de certo modo, secundário: ainda que acentuando a semelhança com Adam, o varão, ficamos com a impressão de que a mulher surge em função de algo, secundarizada.

O jesuíta e biblista francês Jean-Louis Ska, num breve artigo publicado em 1984, ajuda-nos a perceber melhor o sentido deste adjetivo “auxiliar”, estudando o termo original hebraico, ‘ezer. E aqui deparamo-nos com um dado verdadeiramente magnífico.

Em primeiro lugar, o termo ‘ezer, “auxiliar” não aparece muitas vezes ao longo do Antigo Testamento: apenas 21 vezes. E, nessas 21 vezes, o termo refere-se quase sempre, não ao homem ou à mulher, mas ao próprio Deus. Vejamos apenas dois exemplos significativos, retirados do livro dos Salmos:

Salmo 121,1-2: «Levanto os olhos para os montes: de onde me virá o auxílio? O meu auxílio vem do SENHOR que fez o céu e a terra.»

Salmo 33,20: «A nossa alma espera no Senhor; Ele é o nosso auxílio e o nosso escudo.»

O termo “auxílio”, surge frequentemente em contextos nos quais o crente – ou o povo de Israel – se encontra em situações vitais de perigo, de grande risco, seja o caso de uma perseguição, opressão, fome ou angústia. Não se trata de pedir uma ajuda material, mas uma intervenção pessoal do próprio Deus. Ou seja: ‘ezer refere-se a um auxílio vital, fundamental, que tem a ver com a própria sobrevivência pessoal: não é algo acessório, de que possamos dispensar-nos. É um auxílio que só o próprio Deus pode prestar.

Assim, quando o texto do Génesis se refere à criação da mulher, está a pressupor uma situação de grave perigo para o homem, a quem só o próprio Deus pode salvar. De que perigo se trata? Da solidão: “Não é bom que o homem esteja só”. A solidão surge talvez como o perigo maior que afeta a vida do ser humano: em muitos sentidos, corresponde a um perigo de morte.

Por aqui podemos ver a importância que o texto bíblico atribui à criação da mulher: esta não é obra, ou posse, ou direito adquirido por parte do homem, mas constitui um dom que provém do próprio Deus. Porque a densidade, o significado de tal auxílio só pode ser divino. Ao atribuir-lhe o valor de auxílio, ‘ezer, o texto está a louvar a mulher com uma prerrogativa que o Antigo Testamento confere apenas a Deus. Porque, verdadeiramente, só Deus constitui o auxílio pleno, perfeito e definitivo ao ser humano.

Neste sentido, a intenção de Papa Francisco para o mês de Maio constitui uma inspiração: «Para que, em todos os países do mundo, as mulheres sejam honradas e respeitadas, e seja valorizado o seu imprescindível contributo social.» O texto bíblico recorda-nos que o seu valor, a sua vocação é divina: a ternura, o respeito, o cuidado, o saber acolher e aceitar a sua diferença constitui uma aprendizagem que nós - os varões - não poderemos deixar de aprender.

[Na imagem: Amoun, uma refugiada palestiniana de 70 anos, cega e originária da cidade síria de Aleppo, descansando por breves momentos numa praia após ter chegado à ilha grega de Kos, no mar Egeu. (Yannis Behrakis, Thomson Reuters – 12 Agosto 2015); o artigo referido de Jean-Louis Ska foi consultado na obra em castelhano El caminho y la casa, Estella 2005].

Rui Vasconcelos

 

 

 

 

 

SUPERMERCADO DE DESEJOS

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Uma característica nossa, transversal a todos os tempos e todos os lugares, é a procura de um sentido para a vida, isto é, vivemos, na prática, à procura da verdade, daquilo que nos realiza. Há tantas propostas de sentido que nos são oferecidas que às vezes ficamos sem saber para que lado nos havemos de virar. Quem tem razão, afinal? Parece que cada setor da sociedade tem a sua verdade, cada um tem os seus argumentos que parecem ser sempre legítimos. Dizem-nos que não existe uma verdade, que não existe nenhum sentido para a vida. Convencem-nos que a verdade para um pode não ser verdade para o outro.

Fala-se muitas vezes do espírito consumista dos nossos tempos e que as pessoas são cada vez mais superficiais. Não acredito nisso! Todos, até a pessoa mais consumista e aparentemente mais superficial do nosso mundo, temos dentro de nós a necessidade de responder à pergunta fundamental da nossa existência: todos queremos realizar a nossa vida, encontrar o sentido, dar uma motivação profunda àquilo que fazemos e somos. Mesmo quando nem sequer nos apercebemos! Até a pessoa aparentemente mais superficial, que procura só a satisfação imediata das suas vontades, busca, na verdade, um sentido para vida!

No fundo, aquilo que nos move é um desejo profundo de amor e de realização. Ninguém quer deixar a sua vida passar ao lado. Este desejo de uma vida plena está como que escrito nos nossos genes. Queremos uma vida mais feliz, queremos o melhor para a nossa família, queremos que os nossos filhos estudem nas melhores escolas, queremos evitar as dificuldades e maximizar as vitórias e chegar ao fim de cada dia com a sensação de termos tido um dia cheio e bem vivido.

Este desejo profundo de uma vida plena é uma marca divina no nosso coração, um sinal da sua presença. Deus é vida e por isso um desejo de viver uma vida plena, um desejo de uma vida intensa não é para desprezar, mas para acolher porque, mesmo que não nos apercebamos, este, é na verdade, desejo d’Ele. Jesus diz de Si mesmo que veio para que tenhamos a vida e a tenhamos em abundância (cf. Jo 1, 10)!

Este desejo de realização e de vida plena impele-nos para a satisfação das nossas necessidades, faz com que mergulhemos no nosso dia a dia à procura, muitas vezes sem sabermos o que procuramos. Assim, um adolescente é aquele que está à procura por todos os lados, incessantemente; ainda não tem critérios e por isso quer realizar todos os seu desejos. Imediatamente! Sem esforços. Procura as satisfações instantâneas. A cultura dominante diz-lhe que ele pode satisfazer imediatamente todos os seus desejos com as milhares de possibilidades que lhe são oferecidas. Tantas opções altamente sedutoras nos são apresentadas continuamente. Tantas seduções que nos suscitam desejos que exigem ser experimentados. Imediatamente. Uma viagem a um local inesquecível onde todos os desejos se podem realizar, o último modelo de um telemóvel que finalmente fará tudo aquilo que sempre sonhamos, um detergente que finalmente lava melhor do que todos os outros, um perfume que a todos seduz, um crédito que quase parece que me pagam para o fazer... sempre a última coisa que finalmente satisfará todos os nossos desejos e fará com que tenha mais amigos, mais dinheiro, mais saúde...

Rapidamente nos apercebemos que logo que conquistamos o objeto do nosso desejo, logo que temos o último modelo de telemóvel, o último tablet, o perfume mais caro, a viagem mais exótica, logo que o desejo está satisfeito, este não nos traz a paz. Logo que o objeto do desejo está conquistado, a dor existencial da procura fica ainda mais forte. Não está aqui a felicidade.

A exigência fundamental da vida de cada um de nós está em sermos acolhidos e recebidos pelos outros, isto é: amar e ser amado. A cada proposta sedutora que nos chega achamos sempre que assim seremos mais admirados, mais respeitados, tal como o adolescente que mostra aos amigos o telemóvel novo. Rapidamente percebemos que não somos mais aceites ou amados porque temos este telemóvel novo e, desiludidos, mudamos o foco da nossa atenção para outra oferta do grande supermercado de desejos do mundo, onde cada desejo é apresentado como indispensável para a felicidade e infalível para a nossa realização.

A adolescência termina quando finalmente percebemos que realizar a exigência existencial de fundo, isto é, que o sentido da vida, a paz e a felicidade não estão na satisfação de todos os nossos desejos imediatos, mas antes em aprender a conviver com uma dor que nunca desaparece totalmente, mesmo numa vida aparentemente pacífica e plena. É uma dor que nos empurra para a frente, nos faz abrir caminhos em direção aos outros.

A adolescência termina quando já não fazemos só aquilo de que gostamos, mas aprendemos a amar aquilo que fazemos e centramos o nosso coração no essencial... "onde estiver o teu tesouro aí estará o teu coração” (Mt 6, 21).

 

Marco Cunha, s.j.