Texto baseado na entrevista « ‘Silence’: Interview with Martin Scorsese »,
feita por António Spadaro SJ, in La Civiltà Cattolica, 2016 (nº 3996).
Rui Fernandes, sj
Como chegou Martin Scorsese ao "Silêncio"? O realizador acabara de realizar "A Última Tentação de Cristo". O Arcebispo Paul Moore, da Igreja Episcopal em Nova Iorque, tendo visto e comentado o filme, ofereceu-lhe o livro de Shusaku Endo. Começava aí uma história de interrogações e provocações interiores sobre a vida e seus ‘lugares’: a violência, a fé, a integridade, o horror, a graça. Estávamos em 1988.
Não sei ao certo se terei pensado em fazer o filme imediatamente. A história era tão perturbadora e tocava-me tão profundamente que não sabia se alguma vez teria sequer capacidade de o fazer. Mas, com o passar do tempo, algo me dizia: ‘Tens que tentar’. (...) Olhando para trás, penso que este longo processo de gestação foi, para mim, uma forma de viver com a história e de viver a vida - a minha própria vida - em torno dela, em torno das ideias do livro. Essas ideias mexeram comigo e fizeram-me regressar novamente à questão da fé. Olhando para trás, tudo isto se me assemelha a uma peregrinação - foi assim que o senti.
Partindo da longa entrevista de Martin Scorsese agora publicada, é difícil separar a sua reflexão sobre a fé (ou a sua «obsessão pelo espiritual») da sua meditação sobre a vida. De imediato, porque a questão de Deus, da fé ou da santidade se lhe apresentou, antes de mais, como uma interrogação existencial. Acólito, vivendo num meio familiar católico com raízes italianas, o realizador cresceu embebido em relatos de um Deus castigador, apenas temperados pelo testemunho do seu pároco (padre Principe) - um homem capaz de misericórdia.
Tal como muitas outras crianças, vivi estarrecido e muitíssimo impressionado pelo aspecto severo de Deus, tal qual nos era apresentado - segundo o qual Deus nos castiga quando/se fazemos algo de errado, o Deus dos raios e trovões.
Por outro lado, a fé, antes de ser uma questão ritual, parecia-lhe ser sobretudo uma experiência de todos os dias.
De pequeno fui percebendo que ‘ser praticante’ não é algo que acontece num espaço sagrado, durante certos ritos, a determinadas horas do dia. ‘Ser praticante’ é algo que acontece lá fora, a toda a hora. ‘Ser praticante’, de facto, é tudo o que fazes, bom ou mau, e [o modo como] reflectes sobre isso. Eis o desafio.
Ora, o desafio parece ser tanto maior se considerarmos o quão ambígua a vida pode ser. A vida tem um lado brutal, violento, auto-destrutivo.
Será que podemos cultivar a bondade a ponto de, numa fase futura da evolução da humanidade, a violência desapareça? O certo é que, nesta fase, a violência existe. É algo que fazemos. É importante mostrá-lo, para que ninguém caia no erro de pensar que a violência que só toca aos outros - que os ‘violentos’ são os outros. «Eu era incapaz de fazer tal coisa». Bem, na verdade, eras.
A violência é uma parte do ser humano. O humor, nos meus filmes, provém das pessoas e da sua forma de pensar, ou da sua irreflexão. A violência e a ‘profanidade’ da vida. Ou o aspecto telúrico, se quisermos ser mais elegantes. A profanidade e a obscenidade existem, o que significa que fazem parte da natureza humana. Não que ela o seja por inerência - mas antes que é uma das formas possíveis de ser-se humano. Não é uma boa possibilidade, mas é uma possibilidade.
Falando do seu célebre "Touro Enraivecido" (Raging Bull, 1980), o realizador mostra como, tantas vezes, a violência (ou o castigo) contra os outros esconde uma outra forma de violência, não menos sangrenta, contra si próprio. Subtilmente, a questão da imagem de Deus (o Deus da punição) remete para a nossa capacidade de integrar a nossa própria imperfeição.
[No filme "Touro Enraivecido", o personagem] Jake castiga todos os que estão à sua volta quando, de facto, ele se está a castigar a si próprio. No final, quando ele se olha ao espelho, vê que deve ser misericordioso consigo próprio. Dizendo de outro modo, ele tem que se aceitar e viver consigo mesmo. Talvez então se lhe torne mais fácil viver com os outros, e acolher a sua bondade. (...) [É preciso] aceitar-se a si próprio, viver consigo mesmo. (...) Penso que essa é uma forma de definir o que seja a ‘salvação’. Isso estende-se às pessoas que amas: a tua família, os teus amigos, os teus entes queridos. Tentas ser o melhor que puderes, e o mais sensato e compassivo que te for possível.
Retratar a vida sem ignorar os seus contornos ásperos insere-se numa dinâmica fundamental de ‘reconhecimento’. Reconhecer-se sem ilusões mas sem punições. Essa seria, talvez, uma primeira dimensão da vida espiritual, segundo Scorsese. Essa dinâmica interior anda a par de outra, exterior. Como viver (e manter) a fé em condições de adversidade?
O cineasta abordou por diversas vezes a questão, ora procurando o testemunho de santos, ora reflectindo sobre o que significa ser-se padre. Ao longo da sua carreira, o realizador mostrou interesse em retratar vidas de santos, perguntando-se porque são santos os santos? Uma vez mais, a ideia da compaixão emerge como lugar fundamental.
[Pensei explorar uma questão]: o que é um santo? (...) Temos figuras como um Francisco, uma Catarina, uma Teresa. Nenhum deles era aquilo a que eu chamaria de um santo activista, e eles eram extremamente diferentes de alguém como o Padre Pio, por exemplo. A essência [da santidade] - compaixão, amor, viver a vida imitando a Cristo - e a questão sobre como viver uma vida assim no mundo moderno - foi algo que ocupou Rossellini no seu filme Europa ‘51.
A imitação de Cristo seria, então, o fundamento de uma experiência de fé. O tema da ‘imitação’ não está isento de dificuldades. Como pode alguém ser em função de um outro? Aqui, a figura do ‘padre’ é arquetípica. O ‘padre’, sendo ‘chamado’, deve procurar viver descentrado de si, numa atitude de disponibilidade aos outros.
Quando era mais novo pensei fazer um filme sobre ser padre. [Pensei, eu próprio, ser padre, até que acabei por descobrir, aos 15 anos, que] uma vocação é algo de muito especial, algo que não podes adquirir por ti mesmo e que não é algo que possas ter apenas porque gostavas de ser parecido com outro pessoa. (...) Ora, se alguém é de facto chamado, como pode lidar com o seu orgulho próprio? (...) Por isso, a questão é : como pode um padre libertar-se do seu ego? Do seu orgulho? Eu queria fazer esse filme. E fi-lo com "Silêncio", quase 60 anos depois. (...) Rodrigues bate-se precisamente com essa questão.
Quando chegamos ao "Silêncio", vemo-nos perante um filme que condensa uma reflexão sobre a fé. O que significa crer? De que modo imagem de Deus e reconhecimento de si interagem? Como crer quando a fé é posta à prova? O filme coloca-nos enfim diante do aspecto paradoxal da fé, onde renunciar e afirmar podem coincidir, tal como a misericórdia pode coincidir com o reconhecimento da miséria.
Não sabemos em que é que o padre Ferreira acreditava, de facto, do ponto de vista histórico. Mas, no romance de Endo, parece claro que ele perde a fé. Numa perspectiva diferente: talvez lhe parecesse insuportável lidar com a vergonha de renunciar à fé, ainda que fosse para salvar a vida de outros.
Rodrigues, por seu turno é alguém que renuncia à fé e que, por esse meio, a recupera. É esse o paradoxo. Simplificando: Rodrigues ouve Jesus dirigir-se-lhe, enquanto Ferreira não; aí está a diferença.
Como vai ser o ano 2017, o tempo dirá. Da minha parte apenas desejo que seja o que Deus quiser e os homens deixem que seja. Hoje fala-se e escreve-se com demasiada frequência sobre o desmoronamento do projeto europeu, chegando a ouvir-se anúncios catastrofistas do fim da civilização ocidental. Há sinais de mal-estar, para não dizer de má consciência e desnorte, acompanhados da consciência de valores perdidos em favor de relativismos de toda a ordem, de insegurança e medos e do salve-se quem puder no meio de acusações mútuas. No caso português, também começam a ouvir-se vozes pessimistas de fim de regime. E, no entanto, acredito, que pode bem ser um ano de graça se quisermos e soubermos aproveitar o Centenário das Aparições de Fátima para uma reflexão profunda sobre os caminhos que coletivamente estamos a percorrer e tivermos a coragem de mudar de vida na linha da mensagem que Fátima nos transmitiu. As celebrações do Centenário, com o seu ponto alto nos dias 12/13 de maio próximo no Santuário de Fátima, com a presença do Papa Francisco, são já em si uma graça e uma “provocação”.
O Centenário das Aparições leva-nos obrigatoriamente para o drama europeu de 1917 (a revolução comunista na Rússia e a 1ª Grande Guerra Mundial com tudo o que isso significou) e, no caso português, para o 5 de outubro e a implantação da 1ª República, cujas consequências não foram assim tão meigas como nos querem fazer crer (não sei mesmo se não estaremos ainda a pagar por elas), mas leva-nos também com o olhar e o pensamento para a ação misteriosa de Deus a trabalhar naquele contexto histórico através de três crianças (Lúcia, Francisco e Jacinta) de tenra idade, ao ponto de a sua mensagem se impor à Igreja, ao país e ao mundo. E a trabalhar continua Deus, felizmente para bem nosso e da humanidade.
As pessoas fixam-se muito no fenómeno em si das aparições (milagre do sol, etc.), quando o importante é o que ali, naquele lugar insignificante, desconhecido e sem história chamado “cova” da Iria, começa a nascer e a crescer: uma história que, contra ventos e marés, chegou até nós numa caminhada, para já, de cem anos. E que não era uma história de crianças (tipo carochinha), nem sequer de homens (que tudo fizeram para que não existisse), mas de Deus. O milagre que verdadeiramente importa realçar é o que aconteceu e continua acontecendo naquele Santuário de Nossa Senhora de Fátima para onde continuam a correr milhares e milhares de peregrinos vindos de todas as partes do mundo.
Não sei se 2017 vai ser um ano parecido com os contextos da nossa 1ª República e da revolução comunista de 1917; penso, porém, que as Aparições de Fátima, olhadas com atenção e fé, podem ajudar e muito a encontrar caminhos e soluções para os grandes desafios que hoje se colocam a todos nós no momento presente das nossas histórias coletivas. E saber que Deus está metido nesta embrulhada é meio caminho andado para não perdermos a paz e continuarmos a lutar por aquilo em que acreditamos. Porque Deus está connosco. E Maria, a Mãe de Jesus, também.
Quer queiramos quer não, o ano de 2017 ficará sempre ligado a 1917 pelo Centenário das Aparições; para a nossa história como “2017 – Ano Centenário das Aparições de Fátima”; para a nossa devoção ficará certamente a marca indelével do carinho misericordioso de Deus de que o Papa Francisco é portador. Ficará, espero e espero que perdure, o “mimo” de Deus e a “ternura” de Maria, a “Nossa” Senhora de Fátima.
É muito claro na Escritura, sobretudo em S. João, quer no Evangelho quer nas cartas, que a Luz veio às trevas e estas não a receberam. É também claro a luta das trevas contra a Luz. Esta incomoda, desinstala, põe a claro o mal, o ódio, o crime, o roubo, a fraude, a promiscuidade, o tráfico de pessoas, a venda criminosa de armas, a falta de liberdade, etc. O poder do mal e do maligno, chamem-lhe demónio ou satanás, príncipe das trevas, como lhe chamava Jesus, continua a lutar contra o bem, a verdade, a santidade, a vida das pessoas, a liberdade religiosa, e lança as trevas, qual nevoeiro que impede de ver o bem, a beleza, o amor, o valor da vida, da paz, e nos engana, seduz, arrasta para o abismo do mal, da falta de dignidade, de cobardia, de sedução e intimidação, que nos manobra como quer e deseja.
Damo-nos conta de tudo isto, desta luta que se arrasta há séculos e que continua hoje no mundo à nossa volta. Mata-se, rouba-se, faz-se explodir bombas, derrama-se sangue, vendem-se pessoas, exploram-se os pobres, esmagam-se liberdades, fomenta-se a exploração económica para que os pobres sejam mais pobres, semeia-se a violência doméstica. Manobras macabras, satânicas querem ofuscar a Luz que é Jesus, sua Palavra, que é a Verdade, a Justiça, a Vida humana com toda a sua riqueza. Vai-se semeando, como areia no ar que gera penumbra que impede ver o caminho do bem e da verdade e ficarmos insensíveis à calúnia, à mentira, à exploração de menores, à venda de raparigas para a prostituição, etc. Mesmo com muito otimismo e muita esperança de um Ano Novo repleto de graça e de dons de Deus, o mal continua a manobrar inteligências e corações, vidas inteiras. O panorama não é famoso, brilhante. As trevas continuam a lutar, a fazer seus estragos, desfazendo vidas, cidades, países. Sangue inocente continua a correr, milhões de pessoas sofrem a fome e morrem por causa dela, porque há muita ganância, muita exploração, muito crime contra a vida e o amor, contra a liberdade e a paz. Há desertos sem pão, sem amor, sem liberdade, sem fé, sem Deus. Há famílias sem unidade, sem amor, sem dignidade, muitas sem emprego, sem pão, sem carinho.
Mas Jesus é a Luz. Maria é a Mãe que nos deu a Luz. Neste Ano do Centenário das suas Aparições em Fátima, temos que ouvir muitas vezes estas suas palavras: “O meu Imaculado Coração será o vosso refúgio e o caminho que conduz a Deus”. E também outras que nos animam: “Por fim o meu Coração Imaculado triunfará”. Foi Nossa Senhora, a Mulher que calcou a cabeça da serpente, que venceu o dragão enganador, que nos pode ajudar na luta contra o poder do mal, do pecado, das trevas. Ela, Mãe e Rainha, quer ajudar-nos e pede a nossa conversão, a nossa oração, a nossa penitência. Mas continuamos surdos às suas palavras, aos seus pedidos, às suas promessas, aos seus apelos. Com Maria seremos vencedores e a vitória será nossa, porque é d’Ela, da Mãe de Coração Imaculado. Falta-nos fé, falta-nos oração, falta-nos silêncio para escutar Deus e a Mãe. Estamos adormecidos, tíbios, frouxos, mundanos. Precisamos de conversão sincera, autêntica, vital, para que a Luz brilhe e ofusque o poder do mal e do pecado, destrua a escuridão da noite tenebrosa do maligno. Precisamos de ser mais evangélicos e acreditar na Palavra de Jesus. Precisamos de deixar o pecado e os seus tentáculos de mal. Precisamos de agir com audácia, com muita fé e muita oração.
Jesus usou estas expressões: “o príncipe das trevas”, “o homicida desde o começo”, “o príncipe deste mundo”. Hoje não falamos delas ou por ignorância, ou por medo, ou por desejo de não parecermos retrógrados, ou porque o mal nos manobra a inteligência e a língua, e, sobretudo o coração. Mas o mal entra em nós, está em nós quando criticamos ou caluniamos, quando inventamos algo de falso de alguém, quando não somos atentos e delicados com os mais pobres, doentes ou abandonados, quando desprezamos alguém, quando tiramos a alegria do coração de uma pessoa, quando acumulamos o supérfluo que pertence aos pobres, quando nos deixamos levar pela vaidade e pelo egoísmo e não nos lançamos ao serviço humilde e ao amor sem reservas, quando acumulamos bens sem necessidade, quando o nosso eu é rebelde ao Evangelho e suas exigências, quando não temos sentido de unidade, de paz e comunhão na paróquia, na família, na diocese. Sempre que não temos coração pobre e humilde e não servimos com simplicidade a Igreja nossa Mãe, não trabalhamos em comunhão com o Papa, quando não somos instrumentos de apostolado ativo, convictos e convincentes, quando o mundano nos impede de rezar, de viver uma vida de sacramentos cuidada e amorosa, estamos a ser manobrados pelo mal. É a luta contínua das trevas e da Luz. Não nos deixemos enganar. Não tenhamos medo nem nos deixemos seduzir pelo maligno. Um filho de Deus luta para não pecar, não estar do lado das trevas, não se deixar enganar pela poeira que nos impede de ver e de ser ao jeito de Jesus.
O Sufismo é uma das mais belas tradições espirituais da Humanidade. Nasceu no seio do Islão, e as suas origens remontam a Maomé. Transmitida de mestre para discípulo e presente hoje em numerosas comunidades, a vivência do Sufismo reside no aprofundamento espiritual dos ensinamentos do Islão, mediante símbolos, contos e narrativas. Por exemplo, para o Sufismo a “guerra santa” (al-jihad al-akbar) é a luta contra o nosso próprio ego, contra os impulsos egoístas que nos habitam e que impedem a nossa aproximação de Deus; só depois vem a luta contra a injustiça e a opressão, a al-jihad al-asghar (“guerra menor”).
Por aqui podemos compreender como, na realidade, o Islão é uma religião e um fenómeno complexo. Atualmente, a versão que melhor conhecemos (que as notícias mais divulgam) é a do chamado Wahhabismo (de Wahhab, líder religioso do século XVIII). O Wahhabismo teve a sua origem na atual Arábia Saudita, e é a partir deste país (aliado do mundo ocidental) que se divulga por todo o mundo islâmico através de um simples fator: muitos dos líderes religiosos islâmicos formam-se na Arábia Saudita. O Wahhabismo é uma visão conservadora do Islão, aliando-se à insatisfação vivida pelas populações árabes do Médio Oriente e norte de África (da colonização europeia dos séculos XIX e XX às guerras do Golfo e do Afeganistão, passando pela criação do estado de Israel e às disputas com as populações palestinianas). Daqui que o Islão nos surja como uma realidade violenta (a sua expansão inicial deveu-se a um misto de conversão religiosa e de violência militar, um pouco como os países europeus fizeram na América Latina e África entre os séculos XVI e XIX); mas, no seu interior, o Islão possui uma riqueza e diversidade espiritual de que o Sufismo é o melhor exemplo.
Entre as parábolas e contos que nos chegam do Sufismo, encontramos uma belíssima história sobre um diálogo entre o profeta Moisés e um pastor. O tema da história é a oração e as fórmulas adequadas para falar com Deus. A sua autoria é de Jalaluddin Rumi, que viveu na Pérsia no século XIII.
Aqui fica uma breve versão deste conto: que, neste ano de 2017, as palavras para a oração não deixem de brotar do nosso coração; e que todas as mulheres e todos os homens não deixem de encontrar, nas suas tradições espirituais, a simplicidade que conduz à Paz.
Havia nas planícies da Pérsia um pastor de coração simples e puro. Não tinha estudos, nem conhecia os ensinamentos da religião, mas confiava em Deus. Certo dia, elevou esta prece:
«Oh querido e amado Senhor, onde estás Tu, Tu a quem eu dediquei a minha vida? Onde estás, Tu de quem eu sou apenas um humilde servo? Oh Deus, para quem eu vivo e respiro, por cuja graça existo...»
Nesse momento, Moisés ia a passar por perto, e escutou esta oração. Decidiu admoestar o pastor, dizendo-lhe:
«Como te atreves a falar a Deus dessa maneira? O que dizes são blasfémias. Será Deus Todo-Poderoso um simples ser humano? Usa sandálias e meias? É Ele uma criança por criar que precisa de leite para crescer? Não, não é! Deus é completo em si mesmo e de nada necessita».
O pastor retirou-se cabisbaixo: na sua simplicidade, não entendia o motivo pelo qual o profeta se indignou com as suas palavras, mas aceitou a sua autoridade. Moisés prosseguiu o seu caminho, orgulhoso por ter corrigido uma alma extraviada. Mas o Todo-Poderoso falou-lhe:
«Por que te vieste meter entre Nós e o nosso leal servo? Por que separaste o amante do seu Bem-Amado? Nós enviamos-te ao mundo para unires um ao outro e não para romper o laço que os ata. Recorda-te que no Amor as palavras são apenas a casca exterior e nada significam. Nós não damos atenção à beleza da frase ou ao rigor da sentença. Nós apenas olhamos a realidade interior do coração. Assim conhecemos a sinceridade das nossas criaturas, mesmo quando as suas palavras são desajeitadas. Pois aqueles que ardem no fogo do Amor proferem também palavras de fogo».
Moisés compreendeu o seu erro, e partiu à procura do pastor.
[Esta é uma versão abreviada do conto Musa e o Pastor, publicado no livro de M. Bayat, M. Ali Jamnia, Contos do País dos Sufis (trad. José D. Morais) Lisboa 2002].