Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Apostolado da Oração

A "alegria ao poder" ou o poder da alegria

hat-2014559_1920.jpg

 

Estamos em maré de Carnaval. Ninguém levará a mal que fale da alegria. Embora a alegria seja para exercitar todos os dias de todos os anos. Embora nem todos os tipos de alegria, no Carnaval ou fora dele, sejam de recomendar. Há que cultivar a alergia à alegria cínica e trocista, à alegria irónica e mordaz. Que alegrias tão tristes e deprimentes, em contramão e marcha-atrás do sentido único do sorriso amigo e da festa fraternal!

 

A alegria foi inventada desde sempre por Deus família de ótimo bom humor (Pai, Filho e Espírito Santo), fonte inesgotável de júbilo e festa. A sisudez, austeramente tristonha, não pode vir de Deus. É uma emanação do inferno de Lúcifer e companhia. A história, sem começo nem fim, de Deus eterno é um hino à alegria jubilosa, aconteça o que acontecer. É uma história de salvação, apesar de todos os desvarios humanos, por vezes gravíssimos, de bradar aos céus. Felizmente que Deus tem superabundante bom humor, respondendo aos nossos desacatos e malvadezas com um sorriso misericordioso, maternalmente paternal.

 

Criados à imagem e semelhança de Deus, todos temos o ADN divino da alegria bem humorada. Mas cada um segundo o seu jeito e estilo. Há a alegria dos extrovertidos e a dos introvertidos; a alegria dos espontâneos e a dos reflexivos; a alegria daqueles a quem tudo correu ao seu gosto e a alegria purificada pelo sofrimento. Não podemos sonhar com uma alegria cor-de-rosa, soft e fácilzinha, ensaiada para as ocasiões em que o vento sopra de feição nos mastros do barco da nossa vida. A alegria deve ser estilo arco-íris, integrando as cores mais luminosas e as mais obscuras. Não é de noite que mais precisamos da luz? Não é no abismo da angústia que mais urge plantar os amores-perfeitos da alegria?

 

Poderá alguém objetar: Eu sou uma pessoa séria. Não me peçam para ser folgazão. Tenham paciência, mas nunca alinharei em ser folião num cortejo de Carnaval. Há gente que leva a vida a rir, mas eu quero levar a vida a sério… Importa sublinhar que a seriedade sã deve andar de mãos dadas com a alegria. O conhecido artista Almada Negreiros afirmou, por escrito e com a vida, que «a alegria é a coisa mais séria deste mundo». Alguns dizem que Cristo chorou várias vezes, mas nunca riu. É uma injusta acusação a quem foi «perfeito Deus e perfeito homem» e assim nos exortou no seu discurso de despedida: «Que a minha alegria esteja em vós e a vossa alegria seja completa» (João 15, 11). Viver na alegria é cumprir a vontade explícita de Cristo. A alegria é um mandamento humano e cristão, não numa opção de luxo para psicologias divertidas e hilariantes. Não é um adorno, mas uma trave-mestra de quem vive orientado por Deus Amor. «Deus é alegria» afirmou o Papa Paulo VI. Paul Claudel, poeta e dramaturgo de renome, esclarece que «o único dever neste mundo é a alegria». É o dever de ser feliz fazendo felizes os outros. São Paulo recorda aos cristãos esta obrigação: «Alegrai-vos sempre no Senhor. De novo vos digo, alegrai-vos!» (Fl 4, 4).

 

Não basta ser alegre. É preciso dar qualidade à alegria. Não à chalaça, à troça e à chocarrice. Há que dar graça às nossas graças para que sejam cordialmente engraçadas. Importa crescer na qualidade amorosa da alegria, até atingirmos o planalto da consolação e alcançarmos o cimo do júbilo e o cume da exultação.

 

Um nosso conterrâneo, de há 14 séculos atrás, S. Martinho de Dume, exortava-nos à ascética da antitristeza para chegarmos à mística do júbilo: «À tristeza, se puderes, não lhe dês entrada no coração; se não puderes, não a ostentes no rosto». Obrigado, irmão Martinho, por esta exortação de um idealismo tão realista.

 

O Papa Francisco tem sido um corajoso profeta da alegria. As suas duas exortações apostólicas são como o diapasão pelo qual afinar toda a nossa vida: «A alegria do Evangelho» e «A alegria do amor». Das múltiplas citações que poderia fazer na linha da alegria, cito apenas esta passagem de «A alegria do amor»: «As alegrias mais intensas da vida surgem quando se pode provocar a felicidade dos outros, numa antecipação do Céu. Vem a propósito recordar a cena feliz do filme A festa de Babette, quando a generosa cozinheira recebe um abraço agradecido e este elogio: “Como deliciarás os anjos!”. É doce e consoladora a alegria de fazer as delícias dos outros, vê-los usufruir delas. Este júbilo, feito de amor fraterno, não é o da vaidade de quem olha para si mesmo, mas o do amante que se compraz no bem do ser amado, que transborda para o outro e se torna fecundo nele» (n. 129).

 

Permitam-me propor-vos este programa de Carnaval: um desfile de horas e lugares para alegrar a todos os que encontrar. Um programa de «Tristeza zero. Alegrias mil». Vai ser também o meu programa.

 

A alegria ao poder? O poder da alegria! É imenso. Capaz de ressuscitar mortos de tristeza.

 

Manuel Morujão, sj

O filme “O Silêncio”

japão.jpg


Por esta altura, muitos dos que me leem já terão visto o filme “O Silêncio”, de maneira que já se poderão posicionar face a umas observações que se me ocorre fazer.


Perto do fim do filme, Rodrigues renega a sua fé publicamente, parece-nos que para salvar aqueles que estão com a cabeça enterrada nas covas a morrer lentamente. Mas a sua apostasia vai tomar uma dimensão que estilhaça os limites da privacidade daquele ato. Os japoneses não deixam que se pense que aquilo foi apenas um momento de fraqueza; obrigam-no a provar – tanto quanto exteriormente é possível provar, e é só isso que lhes interessa – que renegou a fé para sempre, obrigando-o a converter-se ao Confucionismo, fazendo-o apostatar com regularidade e fazendo-o adotar os costumes japoneses, impondo-lhe inclusivamente uma família. Mas há mais. Puseram-no a denunciar símbolos cristãos que, ao serem descobertos, levavam à prisão de quem os trazia da Europa.


No filme, o sacerdote ouve a voz de Cristo dizendo-lhe que apostatar está certo. O filme transmite-nos a ideia de que, embora Ferreira e este sacerdote tenham apostatado, continuam a ter fé: a Ferreira escapa-se-lhe a expressão “Nosso Senhor” quando está à procura de símbolos cristãos nos objetos trazidos pelos holandeses e Rodrigues confessa e vê-se, no final, que guardou sempre uma cruz. Parece que terão guardado a sua fé em privado. Pelo menos o segundo sacerdote. Mas isto em nada atenua o seu testemunho público.


Gostava de confrontar o leitor com a minha opinião. Eu entendo que não era lícito este sacerdote ter apostatado – e estou só a ocupar-me dele – porque a apostasia foi um ato público que – como o inquisidor intuiu, e bem – no Japão representava a Igreja inteira. (Claro que Rodrigues salvou aquelas vidas, mas vidas essas que se tinham entregado ao martírio de sua livre vontade, porque não tinham querido renegar a fé.) Para o inquisidor e para todos os cristãos ainda vivos, com a apostasia dos sacerdotes, foi a hierarquia da Igreja que apostatou. Hierarquia que alimentava o povo espiritualmente e que depois permaneceu no meio desse mesmo povo como confucionista, defraudando todos os que se mantiveram cristãos. Foi o símbolo vivo da religião que apostatou e vestiu uma pele japonesa. Símbolo para todos os cristãos que estavam vivos e símbolo para o governo japonês. Com a apostasia, esse símbolo esfumou-se.


(Nota: isto é a minha opinião teórica. Humildemente, não sei se teria forças para o martírio.)

 

Gonçalo Miller Guerra, sj

 

Aborto, dez anos depois do referendo

file000590484029.jpg


1. No dia 10 de fevereiro, assinalaram-se dez anos do referendo que abriu as portas à legalização do aborto a pedido, em Portugal. Durante estes dez anos, foram praticados cerca de 176 mil abortos a pedido da mãe. Para um país como Portugal, com uma população de 10 milhões de habitantes e uma natalidade muito abaixo do mínimo necessário para a reposição das gerações, são números impressionantes.

 

2. Mais impressionante, porém, é o que os números facilmente escondem: o massacre diário praticado em Portugal contra seres humanos indefesos, massacre legal e, por muitos, considerado uma coisa boa – porque respeita a liberdade da mulher e, como tal, é assunto em que a sociedade não deve intervir, a não ser garantindo, à custa dos impostos de todos, a gratuidade deste «ato médico».

 

3. Em pouco menos de dez anos, eliminou-se, em Portugal, o equivalente à população de uma cidade de média dimensão. Se este massacre não acontecesse no silêncio dos hospitais e clínicas, se as vítimas pudessem chorar e gritar, fossem fotografadas e mostradas na televisão, ninguém toleraria, ninguém falaria de liberdade de escolha ou de direito a decidir. Chamar-se-ia a coisa pelo nome – assassínio de seres humanos indefesos. Exigir-se-ia a intervenção do Estado e a punição severa dos responsáveis, por crimes contra a humanidade.

 

4. Como se trata do aborto, porém, estamos culturalmente anestesiados – e as palavras anteriores parecem a muitos uma enormidade fanática. Por isso, pergunto: no aborto, ninguém morre? Ninguém é responsável? Não há seres humanos indefesos mortos por escolha de alguém? Não há um Estado que permite e financia estas mortes? Em tudo isto, para além dos 176 mil seres humanos deliberadamente mortos em dez anos, o pior são os estragos que esta violência difusa, silenciosa, fria e cínica causa no tecido social e nas vidas que por ela passam e lhe sobrevivem. Pode não ser já, pode não ser de modo evidente, mas todos pagaremos caro o facto de vivermos mergulhados na indiferença perante aqueles que são os mais descartáveis da nossa sociedade.

 

Elias Couto

 

Temperar a Vida

amizade.jpg


Na Mensagem para a Quaresma deste ano, que acaba de ser divulgada, o Papa usa a parábola de Lázaro e do homem rico para nos fazer refletir sobre a importância do dar-se ao(s) outro(s). Segundo Francisco, este texto convida-nos a “abrir a porta do nosso coração ao outro, porque cada pessoa é um dom, seja ela o nosso vizinho ou o pobre desconhecido”.

 

Na nossa vida, na nossa maneira de pensar e no nosso modo de agir, ver o outro como um dom pode traduzir-se na simplicidade de um sorriso que transmitimos a uma pessoa que sentimos estar triste ou num olhar dirigido a um pobre que encontramos na rua (podemos nem lhe oferecer ajuda material, mas o nosso olhar de proximidade terá até mais sentido que a moeda que pudéssemos oferecer).

Os afazeres pessoais, profissionais, sociais e familiares em que nos vemos envolvidos diariamente acabam por vezes por nos envolver numa sequência mecânica de gestos e atitudes que, mesmo envolvendo a relação com outras pessoas, nos mantêm de certa forma algo distantes delas.

Para ver os outros como um dom, não precisamos de mudar de vida, não precisamos de deixar os nossos afazeres diários para nos dedicarmos exclusivamente aos outros, como que buscando um comportamento imaculado. Não é preciso deixarmos de nos preocupar connosco e com o que é essencial para termos uma vida digna. Aliás, nem é bom que tal aconteça.

É simplesmente necessário aproveitar de outro modo ritmos e ações de todos os dias, temperando-os de um modo diferente. Por exemplo, se sou estudante, posso ajudar um colega que vejo em dificuldades e que em momentos anteriores ignorei. Se sou trabalhador, posso pensar nos que vão beneficiar do meu trabalho (dos quais muitas vezes não me lembro), e pôr um empenho diferente naquilo que faço. Se sou pai/mãe, posso dar um sabor diferente às rotinas diárias, encarando-as como um momento de entrega aos filhos e não como um fardo que obrigatoriamente tenho de carregar.

Tendo por base a Mensagem do Papa, a Quaresma que se aproxima pode ser um momento oportuno para efetivamente começarmos a abrir a porta do nosso coração ao outro, vendo-o como um dom. Sintamos que não estamos sozinhos neste barco, que esta é uma missão de todos. E, utilizando as palavras de Francisco, “rezemos uns pelos outros para que, participando na vitória de Cristo, saibamos abrir as nossas portas ao frágil e ao pobre. Então poderemos viver e testemunhar em plenitude a alegria da Páscoa”.

 

Cláudia Pereira

 

A Santa Indiferença!

lpcu8hngu2e-aaron-burden.jpg

 

Mas o quê? Agora até a indiferença é santa?

Esta palavra «indiferença», com o passar do tempo, adquiriu um significado muito diferente daquele que originariamente tinha. Na Igreja primitiva, era usada para indicar que uma pessoa não queria outra coisa que não fosse a vontade de Deus. Significava acreditar que a vontade de Deus é o melhor para nós e estar livre para a seguir.

Vejamos: Santo Inácio de Loiola, fundador do Jesuítas, propõe um percurso espiritual, que ele mesmo experimentou na sua vida e depois propôs a todos aqueles que o quiserem experimentar, nos chamados Exercícios Espirituais. Tendo por fundamento a sua própria vida, Inácio foi capaz de saber ler a sua experiência espiritual à luz da vida de Cristo e não o poderia ter feito sozinho. Inspirando-se em vários autores espirituais da grande tradição da Igreja, por exemplo, São João Cassiano, São João Clímaco e outros, pôde então «ler» a ação de Deus na sua vida e depois, refletindo, pôde propor-nos o itinerário espiritual que hoje encontramos nos Exercícios Espirituais.

Diz Orígenes que Adão, antes do pecado, no paraíso, olhava para o alto e tinha os olhos fixos em Deus. Com o pecado, passou a olhar para baixo, para as coisas do mundo. Assim, encontrar Deus na nossa vida significa readquirir um olhar fixo n’Ele. E como podemos nós ter este olhar fixo em Deus? Diz Jesus que são os puros de coração que veem Deus (Mt 5, 8). Isto significa que são os puros de coração aqueles que têm o olhar fixo n’Ele. Ora, e purificar o coração… o que significa? Como se alcança?

Para estes autores espirituais é claro que este é um caminho progressivo e que não depende exclusivamente de nós: é uma graça a pedir, mas que pressupõe algum esforço do nosso lado. São João Clímaco, na «Escada do Paraíso», apresenta inicialmente este percurso como sendo uma escada que somos convidados a subir e que liga a terra ao Céu. Mais tarde, dirá que na verdade a escada liga a cabeça ao coração de cada um de nós, guia-nos para a nossa própria interioridade. É este o grande caminho da nossa vida em direção ao nosso interior, onde encontraremos o Senhor. O último «degrau» deste percurso, para o qual é preciso apontar, chama-se «indiferença» e São João Clímaco diz, com muito entusiasmo, que esta é «o Céu sobre a terra, a ressurreição antes da ressurreição dos corpos».

Atenção! Isto não significa viver sem sensibilidade, mas antes segundo a razão que vem da fé em Deus. Em poucas palavras: aquilo que o «indiferente» (entendido neste contexto) vive é uma insensibilidade em relação a tudo o que não tem a ver com a vida em Cristo e, por outro lado, desenvolve uma forte sensibilidade pela voz de Deus no mundo. Isto não significa insensibilidade ao sofrimento dos outros ou aos males do mundo, mas exatamente o seu contrário: o cristão que vive a indiferença, isto é, não vive preocupado consigo mesmo, é particularmente sensível aos sofrimentos do mundo precisamente porque está mais disponível para escutar a voz do Deus à sua volta.

Gonçalves da Câmara, Jesuíta português a quem Santo Inácio ditou a sua Autobiografia, dizia no seu Memorial que para Santo Inácio bastariam uns momentos na capela para recuperar a paz interior perante qualquer acontecimento adverso, mesmo que fosse a extinção da Companhia de Jesus. A indiferença é exatamente isto: indica a confiança total em Deus e a certeza que Ele nunca nos abandona. Outro modo de dizer esta indiferença pode ser «alma em paz» ou «tranquilidade interior». Quando, nos Exercícios Espirituais, Santo Inácio nos diz que «é necessário fazer-nos indiferentes a todas as coisas criadas, em tudo o que é concedido à liberdade do nosso livre arbítrio, e não lhe está proibido; de tal maneira que, da nossa parte, não queiramos mais saúde que doença, riqueza que pobreza, honra que desonra, vida longa que vida curta, e consequentemente em tudo o mais» (EE 23) está a dar-nos uma excelente indicação do significado da indiferença.

Vale a pena sublinhar ainda que Inácio diga que «é necessário fazer-nos» indiferentes. Exige da nossa parte alguma colaboração e esforço: em primeiro lugar, é necessária a purificação do pecado, precisamos escolher não querer pecar. Em segundo lugar, é necessária a escolha explícita de uma vida segundo o modelo de Jesus Cristo, isto é, escolher uma vida vivida em Amor: só este nos pode preencher o coração para que não nos deixemos turbar por aquilo que não vem de Deus.

A indiferença inaciana corresponde àquilo que Orígenes chama de «regresso ao paraíso», isto é, corresponde a fixar o olhar em Deus e não querer outra coisa sobre esta terra que não seja viver segundo esse olhar de Amor.

Marco Cunha, sj