Senhor, hoje estou aqui para falar um pouco Contigo. Por isso, resolvi escrever esta mensagem.
Tenho sentido alguma sede de momentos mais fortes de oração, de crescimento interior. Por isso, decidi pedir alguns conselhos. Como quando precisamos de algo que não conseguimos obter sozinhos procuramos ajuda, também pus os pés a caminho.
Sabes, acho que é bom não termos receio de procurar ajuda quando precisamos. Deixando de lado um pouco de orgulho próprio, é bom abrir o nosso coração, deixando-o acolher o que outros nos transmitem. Sim, porque também a nível espiritual ninguém cresce sozinho.
Foi bom poder parar; poder sentir que estava a ter uns momentos para mim, momentos esses que depois me ajudam a melhorar a relação com os outros, na família, no trabalho, na comunidade.
Agradeço a disponibilidade e espírito de serviço de quem me escutou e me alertou para a importância de temperar a vida e os gestos do dia a dia com muito amor.
Os conselhos que recebi têm sido muito úteis e até tenho transmitido alguns deles a outras pessoas. É impressionante como gestos e palavras tão simples, muitas vezes banalizados, podem ter um efeito surpreendente.
O caminho vai-se fazendo... umas vezes num terreno mais uniforme, em que tudo “rola” sem dificuldade, outras vezes de forma mais irregular. Mas é assim mesmo!
Nesta caminhada de crescimento, entra também a celebração do sacramento da reconciliação, celebrado sem pressas, abrindo o coração a Deus e não simplesmente “despejando” uma lista de pecados.
Porque há sempre coisas para limpar no coração. E saber que alguém nos ouve e que somos perdoados é importante também para crescermos.
Desculpa o desabafo, mas precisava de escrever esta mensagem para expressar o que vou sentindo. Obrigada pela atenção!
Há dias, vi o vídeo de uma mulher numa manifestação. Desvairada, insultava os polícias com os piores palavrões. Pior do que isso, era o ódio evidente no modo como se dirigia aos agentes da autoridade. E, pelo meio, gritava: EU SOU PROFESSORA! Perguntei-me o que podia ensinar alguém assim...
1. A resposta acabou por me surgir, pensando no contexto da manifestação. Tratava-se de uma manifestação contra alguém democraticamente eleito, mas cuja eleição o “campo” contrário simplesmente se recusava a aceitar. O que naquela manifestação e noutras semelhantes se afirmava era o ódio como forma de fazer política – mas atirando sobre “os outros” a responsabilidade pelo ódio e o facto de odiar. Aquela PROFESSORA, afinal, podia ensinar muito aos seus alunos. Podia ensinar-lhes como, orwellianamente, se muda a linguagem e se faz do concidadão com ideias diferentes um não-ser ou um não-humano.
2. Acontece o mesmo com o insulto da moda, em política: “populista”. “Populistas” são aqueles que se predefiniu como pertencendo à “direita”, politicamente falando. Entre nós, por exemplo, a líder de um certo “bloco” pode dizer os mais bafientos disparates estalinistas ou maoistas, fazendo apelo aos instintos mais básicos das “massas”, que ninguém estranha nem lhe chama “populista”. E o governo da geringonça pode prometer “sol na eira e chuva no nabal” a todos e todos os dias do ano, que ninguém chama a isto “populismo”. Esse é um epíteto-insulto com que só a direita – sem direito de cidadania plena nos nossos regimes politicamente corretos – tem direito a ser mimoseada.
3. Na Europa, e não só, começa a tornar-se evidente o cansaço de muita gente com o internacionalismo marxista, disfarçado de progressismo, que domina grande parte das “elites intelectuais” e com o multiculturalismo serôdio das mesmas elites, no qual só não há lugar para as tradições culturais dos povos europeus. Chamar “populismo” a este cansaço pode funcionar durante algum tempo, mas a prazo só vai aumentar o cansaço. Insistir nisso e tratar com desprezo as pessoas que se sentem órfãs da sua cultura pode vir a revelar-se, parafraseando um famoso ditador, “a mãe de todas as desgraças”.
Estamos a caminho da Celebração da Páscoa do Senhor e, através dela, das nossas páscoas como vivência e experiência cristãs. A Quaresma como caminho e percurso chega sempre carregada de ressonâncias bíblicas assente em algumas ideias-chave: o “deserto” (lugar de solidão, afastamento e lonjura); a situação de “fome” e “jejum” (lugar de carência) levando a realidade humana para o mundo das miragens e tentações; o “monte” (Sinai/Horeb) como lugar privilegiado de encontro com o Sagrado onde Deus revela e Se revela ao homem e de onde nascem decisões transformadoras de vida e missões clarificadas.
Hoje chamar-lhe-íamos lugar privilegiado de oração onde o homem encontra Deus e Deus encontra o homem nas suas fragilidades, inseguranças, fugas e medos. Foi a grande graça concedida a Moisés que, fugido para as montanhas de Madian e mais conduzido pelo rebanho do sogro do que por vontade própria, chegaria ao monte Horeb, onde faria a experiência da Sarça Ardente, recebendo como missão a condução dum povo que o livro do Êxodo contará longamente.
Julgo importante recordar três experiências bíblicas pelo que de esclarecedor têm como paradigma da nossa caminhada quaresmal, quer em Igreja, quer a nível pessoal. No deserto entrou o povo bíblico como um amontoado de doze tribos; nele caminhou quarenta anos até chegar à Terra Prometida como “povo” e “Povo de Deus”; encontrando Deus, encontrou-se a si mesmo na sua identidade e missão futura.
Para o deserto, com medo da ameaça de morte por parte da rainha Jezabel, fugiu Elias de si mesmo e da missão profética durante quarenta dias e quarenta noites; nele andou perdido até cair de cansaço e sono; aí o encontra Deus e alimenta para continuar a caminhada até ao Monte Horeb, onde recebe a força necessária para novamente regressar à missão e a si mesmo.
No deserto Se refugiará Cristo durante quarenta dias e quarenta noites para responder à forma concreta como devia realizar a missão recebida do Pai, vencendo na sua pessoa a tríplice tentação de todo e qualquer homem: a tentação do material (“Não só de pão vive o homem”), da vanglória (“Não tentarás o Senhor teu Deus”) e do poder (“Adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele prestarás culto”). Será apenas e tão só Servo e Filho do Homem (um de nós, connosco e no meio de nós), abrindo, desta maneira, no seu caminho o nosso caminho pascal pela linha do serviço.
É para este “deserto” que a Igreja nos convoca; é para este “monte” onde Deus nos espera que somos convidados a partir com os nossos medos, fraquezas e limitações. Só que fica no ar uma pergunta: onde está esse deserto e esse monte?
Cristo nunca perdeu a noção do deserto e do monte na sua vida pública. As Bem-aventuranças foram proclamadas no monte, a escolha dos Doze Apóstolos foi antecedida duma longa oração no monte, no seu dia a dia retirava-Se com frequência para “um lugar deserto”, no Horto separa-Se dos seus discípulos (“Sentai-vos aqui enquanto Eu vou além orar”) e aos seus discípulos recomenda o estar só com Deus (“Tu, porém, quando orares, entra no quarto mais secreto, fecha a porta e reza em segredo ao teu Pai e Ele que vê o oculto, há de recompensar-te”).
É para dentro deste ambiente que hoje sou convidado a entrar; é para dentro da realidade profunda do nosso mundo pessoal, onde apenas entram Deus e eu, que o mesmo Deus nos chama. Talvez esteja aí o nosso deserto, cheio de solidão, vazio de tentações; talvez esteja aí o mundo das renúncias por fazer para que, através do jejum e abstinência, aprendamos a abdicar (abster-se) do “mais” em favor do “melhor” e a dizer “não” para sermos capazes de dizer “sim” à vontade de Deus e ao seu projeto, projeto este que nos leva necessariamente aos irmãos para, juntos, continuarmos a nossa caminhada quaresmal ao encontro da Páscoa e das nossas páscoas.
A Quaresma coloca-nos a caminho para conseguirmos chegar à Páscoa que é a passagem, que é a conversão ao amor de Jesus e dos outros. O esforço da Quaresma tem de ser o caminho do amor a Deus na oração, no louvor, na meditação da Palavra, na presença a Jesus do sacrário, na contemplação das suas dores, paixão e morte, e no amor do próximo recordando o mandamento novo da caridade fraterna e lembrando a palavra do Papa Francisco: o outro é um dom. Acolher o outro como dom, tratá-lo como dom, amá-lo como dom, servi-lo como dom de Deus, é o nosso caminho quaresmal.
A santidade é o amor, é a vida de Deus em nós, é a seiva divina que nos transforma e converte. A oração e a penitência só têm sentido se nos levam a amar, amar mais, amar melhor. Então tudo deve convergir para uma caminha que tem por meta o amor. Só amando seremos mais santos, ficaremos preparados para a Páscoa, seremos discípulos amados do Mestre, que foi à Cruz e deu a vida por nós. Amar sempre, nunca desistir de amar. Amar em casa, a família, amar na paróquia e ser elo de ligação e de unidade, de ausência de crítica e de rancor e divisão. Amar sobretudo o pobre, o doente, o que vive só, o que está mais abandonado, isolado, marginalizado. Amar e servir no emprego, na escola, na universidade. Ter o coração aberto aos outros que são dom de Deus para serem amados.
A alma do mundo está doente, o coração da humanidade está doente. E a grande doença é a falta de amor. Daí haver tanta guerra, tanto crime, tanto egoísmo, tanto ódio, tanto desprezo pelos milhões que vivem com fome, sem casa, sem emprego, sem alegria, sem carinho, sem amor. Mundo cruel, satânico, manobrado pelo pai da mentira, pelo príncipe das trevas. Mundo da opulência, do dinheiro que manobra e tece enganos, furtos, condenações horríveis, marginalizações criminosas, corrupção, falta de liberdade interior. Se houver mais amor evangélico, haverá menos abortos, menos adultérios, menos fome, menos desprezo pela pessoa humana que é para nós um dom de Deus. Se houver mais amor, haverá mais justiça, mais distribuição e partilha de bens, mais proximidade do pobre, do sem-abrigo, do doente, mais respeito pela liberdade humana e pela dignidade de cada pessoa. Um mundo com a alma e o coração doente, gravemente doente, onde reina a mentira, a injustiça, a exploração, o tráfico de pessoas humanas, onde se despreza a Deus, a sua lei, a sua Igreja, e onde se matam homens e mulheres criados à imagem de Deus.
Corações endurecidos pelo poder, pelo dinheiro, pelo ódio, com ânsia de morte, de destruição. Corações endurecidos que não se debruçam para ajudar, para servir, para partilhar o que são e têm. Corações endurecidos pela ânsia de prazer, de comodismo, minados pelo egoísmo feroz e cruel, que semeia dor, fome, e não estende a mão nem abre o coração ao mais pobre e marginalizado. Corações endurecidos que perderam o dom de amar, de olhar os outros com carinho, com desejo de servir, de ir ao encontro de quem sofre, semeando com audácia, pão e paz, amor e alegria, verdade e justiça.
Viver a Quaresma com sabor a Páscoa amando sem cessar, descobrindo modos concretos de amar mais e melhor. Imitar o Senhor Jesus “que passou fazendo o bem e curando a muitos” e que foi até ao extremo do amor na morte como dom pleno de Si mesmo. Imitá-Lo, viver à sua semelhança, fazer tudo para que a Quaresma seja caminhada de amor rumo à Páscoa. A oração diária deve conduzir-nos ao amor. A Eucaristia deve ser cada dia “escola de amor”. Só amando seremos mais santos, mais felizes, mais parecidos com Jesus, o Divino Mestre. Amar sempre, amar a todos, amar mais, não se cansar de amar. Semear com nosso exemplo e testemunho de vida o amor evangélico, a caridade sem limites, a partilha generosa, o desejo de só fazer e dizer o bem, o serviço dedicado aos outros, a atenção atenta aos necessitados, a partilha feita com delicadeza e generosidade. Um caminho quaresmal semeado de caridade, vivido em caridade, partilhando amor, gerando Cristo num mundo doente que só com Ele poderá ser curado.
A nossa forma habitual de pensar tende a ver o caminho cristão como um caminho de aperfeiçoamento, um caminho de crescimento pessoal, ético e religioso. A vivência cristã corresponde, na nossa mentalidade, a um tentar chegar cada vez mais perto a um modelo de virtude (que tendemos a identificar com Cristo).
Aqui entra o paradoxo: a abertura à experiência da Graça provoca em nós um baixar das nossas defesas. Percebemos que, nas narrativas dos Evangelhos, os discípulos são chamados a passar progressivamente do lado dos fariseus e doutores da lei (seguros da sua justificação), para o lado dos que reconhecem as suas feridas e clamam a Jesus: «Senhor, tem piedade de nós» (cf. Lucas 18, 35-43).
Talvez este seja um sentido privilegiado do tempo de Quaresma que agora se inicia: através dos sinais (as cinzas, o jejum, a esmola), e através de um escutar mais aberto e atento das Escrituras, poderemos ser acolhidos na experiência da Misericórdia que nos faz nascer de novo, ainda que sejamos velhos (de idade, de mentalidade... cf. João 3, 2-3). Assim poderemos compreender as palavras libertadoras de Isaac de Nínive, monge cristão do século VII:
«Deixa-te perseguir, mas tu não persigas; deixa-te crucificar, mas tu não crucifiques; deixa-te ultrajar, mas tu não ultrajes; deixa-te caluniar, mas tu não calunies. Sê alegre com os que se alegram; chora com os que choram. Tal é o sinal da verdadeira pureza. Sofre com os que sofrem; compadece-te dos pecadores; e alegra-te com os que se arrependem. Sê amigo de todos... Estende o teu manto sobre aqueles que vês cair em pecado e cobre-os; e se não podes carregar sobre ti o seu erro, e receber em sua vez a punição, não os oprimas mais»1.
Que o manto da misericórdia nos abra os olhos e o coração, para contemplarmos a manhã de Páscoa. E que esta Quaresma seja um tempo feliz e fecundo.
Rui Vasconcelos
1Isaac de Nínive, Discursos Ascéticos, 58; citado em A Via da Misericórdia (org. Isidro Lamelas), Lisboa 2016, p. 44.
Imagem: Georges Rouault, Christ moque par soldats, 1932