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Blogue do Apostolado da Oração

As férias deviam durar todo o ano

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Ter um bom tempo de férias é exigente. Ora, exigência em tempo de férias parece uma palavra fora do lugar, pois ao longo de todo o ano sentimos que as responsabilidades e tarefas nos “exigem” tempo, energia, uma força de vontade que se vai esgotando, pouco a pouco. Férias, como habitualmente as consideramos, são uma espécie de suspensão do esforço, de não querer nada para além de estar precisamente a fazer isto: nada. Ou fazer aquilo que realmente nos apetece fazer, sem horários e sem imposições. Não estou a dizer que estes momentos de “nada” ou “fazer o que apetece” não são necessários, o problema é quando identificamos, sem mais, o descanso com estas duas coisas.

 

Esta identificação tão comum não traduz o potencial de umas boas férias, e o modo melhor de o ver é pelos seus frutos. Depois de uns dias ou umas semanas de “nada”, mesmo que seja a viajar por todo o lado ou, até que enfim, nos programas prometidos à família e aos amigos, a ler um livro, a ir ao cinema, a ir a um festival, a fazer desporto, a ir à praia ou à montanha, etc... o que acontece? Terminam estes dias e chega a nostalgia – até tristeza se poderia chamar – de voltar ao trabalho. Conclusão: acabamos as férias certamente contentes e agradecidos com o que aconteceu, mas tristes com o que está a chegar. E a tristeza não é um bom fruto. Diferente seria se acabássemos as férias cheios de alegria por regressar ao “tempo comum” que, aliás, é aquilo que mais excelente temos, a nossa vida quotidiana.

 

A exigência de umas boas férias é aliar o tempo de descanso, com tudo o que de bom e apetecível implica, com uma arte, esta sim exigente. Procuremos fazer com que o tempo de férias seja algo como desenhar o quadro perfeito da nossa vida, no qual nos podemos rever continuamente. Um quadro pintado com os traços das nossas relações mais queridas e das atividades que engrandecem o coração e o olhar, e com as cores bem definidas de Deus, as quais tantas vezes, ao longo do ano, surgem em tons tão desmaiados. As férias dão-nos tempo de qualidade para as coisas mais importantes, são um espaço de lançamento para a vida real, não um intervalo que depois desaparece e nos faz encarar a vida com cara e coração fechados.

 

Agora, que é tão fácil fazer fotografias de todos os momentos, faço-lhe esta sugestão. No final das férias, vividas nesta arte, selecione algumas imagens deste tempo que retratem o melhor da sua vida: Deus, a família, o cultivo do espírito... e mantenha-as em lugar visível. Nos momentos de rotina e cansaço e desânimo, volte à contemplação destes espaços de vida, para neles encontrar o segredo da alegria das coisas simples e gratuitas, que se podem fazer todos os dias. Poderá ser surpreendido ao dar-se conta que, afinal, as férias podem durar todo o ano.

 

A equipa do Secretariado Nacional do Apostolado da Oração deseja, assim, a todos, um reconfortante tempo de férias, cheio desta arte de contemplar a vida, com os seus frutos de alegria para o início do novo ano de trabalho.

 

António Valério, sj

 

 

 

E Deus fez-Se vulnerável – A LOUCURA DO AMOR

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Tendo Jesus chegado a casa, de novo a multidão acorreu, de tal maneira que nem podiam comer. E quando os seus familiares ouviram isto, saíram a ter mão n'Ele, pois diziam: «Está fora de Si!» (Mc 3, 20-21).

 

Nestes poucos versículos vemos como os familiares de Jesus chegaram a pensar que Ele estivesse fora de Si, que tivesse enlouquecido. Ele está tão envolvido na sua missão que Se esquece até mesmo de comer! Por isso começam a dizer: «Está louco»!

 

Jesus é impelido pelo Amor e o Amor não pode ser travado, leva-nos sempre para a frente, derruba as fronteiras do bom senso e destrói os limites do razoável. As escolhas do Amor são sempre marcadas por aquilo que, aos olhos daqueles que se consideram sensatos, parecem ser atos de loucura. Estes, do alto da sua suposta sensatez, dizem: «O amor é cego!». Não, o Amor não é cego! Quem ama, simplesmente, não se deixa ficar pelos limites autoimpostos dos riscos calculados e vê muito mais longe do que a tentação da segurança do conhecido nos quer impor. O Amor é o olhar mais simples e verdadeiro, é aquilo (Aquele!) que nos permite ver.

 

Diante da omnipotência de Deus, podemos ficar bloqueados. Pensamos n’Ele como um ser perfeito e distante, um ser total e imutável, que do alto da sua torre de cristal contempla e avalia a nossa progressão sobre esta terra. Como consequência, consideramos que a presença do mal no mundo seja alguma coisa que Ele, mais ou menos tranquilamente, aceita. Certo, quer que nos salvemos, mas no fundo pensamos que Ele é o responsável porque, se quisesse mesmo, poderia terminar com todo o sofrimento.

 

Diz São Paulo, na carta ao Filipenses: «Ele, que é de condição divina, não considerou como uma usurpação ser igual a Deus; no entanto, esvaziou-Se a Si mesmo, tomando a condição de servo... rebaixou-Se a Si mesmo, tornando-Se obediente até à morte e morte de cruz». Na sua omnipotência, Deus esvazia-Se a Si mesmo e renuncia a todo o poder. Ainda mais: renuncia à vontade do poder que escraviza. Jesus insiste que está entre nós como alguém que serve; esta é a maravilha: a Verdade incarna e liberta-nos esvaziando-Se.

 

Pavel Evdokimov, um teólogo Russo, professor em Paris e observador convidado no Concílio Vaticano II, em linha com a antiga Tradição da Igreja, dizia que o esvaziamento de Cristo de Si mesmo é a manifestação do «Manikòs éros», isto é, do «Amor louco» de Deus por nós. Deus é «louco» por amor. É de São Máximo, o Confessor (séc. VI), e Nicolau Cabásilas, um teólogo do século XIII, que refletiam sobre o Amor louco de Deus pelo Homem, que Evdokimov tira esta expressão da manifestação máxima da omnipotência de Deus: o seu Amor louco por cada um de nós que O leva a esvaziar-Se até à morte e morte de cruz.

 

Por Amor, Deus torna-Se infinitamente vulnerável para nos libertar, para que sejamos verdadeiramente livres. Ele não poderia impor-Se porque o Amor não Se impõe pela força. Diante do sofrimento absurdo que a vida nos pode trazer, diante de uma morte sem sentido ou de uma doença cruel de uma criança inocente, é a fragilidade vulnerável e invencível de Deus, esta manifestação absolutamente paradoxal da omnipotência de Deus, que devemos ter presente. O amor torna-nos vulneráveis e Deus, porque é Amor infinito, é infinitamente vulnerável: não pode fazer outra coisa que não seja sofrer connosco.

 

O deus impassível e severo de alguns teólogos revela-se em Jesus Cristo como um Pai misericordioso. Ele come com os pecadores e compadece-Se das nossas misérias: não é um deus imóvel, impassível, inacessível, perfeito na sua incapacidade de sofrer. Deus fez-Se vulnerável renunciando, livremente e por amor, à sua omnipotência formal. Ele compadece-Se de nós. Incarnando, manifesta o Amor que escolheu habitar entre nós e o Amor é sempre vulnerável, não o pode não ser, se é amor. E é na manhã do Domingo de Páscoa que se manifesta, resplandecente, a vulnerabilidade frágil e definitivamente vencedora do invencível Amor de Deus.

 

 

Marco Cunha, sj

Concede o teu perdão àquele que foste ontem

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O poeta e tradutor Armando Silva Carvalho – que nos deixou recentemente – propõe-nos no seu livro A Sombra do Mar estes versos de forte significado:

 

«Concede o teu perdão àquele que foste ontem

e não te conhece hoje debaixo do chuveiro.

(...)

A verdade é só uma, o que tu foste ontem

já não te conhece».

 

Recomeçar a cada dia constitui uma arte difícil. Transportamos no nosso seio as angústias pelo futuro que imaginamos, e em nós carregam-se as experiências do passado, muitas vezes amargas. Por vezes parece que nem merecemos uma nova oportunidade: já não vale a pena acreditar. Aqui se revela a importância vital que possui a Esperança na nossa vida: ela é o alimento que permite confiar e acreditar no presente e no futuro, apesar de tudo. Por isso outro poeta, Charles Peguy, declarava que a Esperança espanta o próprio Deus.

 

Não se trata de começar do zero: pertence ao próprio Deus, e a Ele unicamente, o criar a partir do nada. Somos o que a história nos fez e o que nela construímos e desconstruímos. O sinal maior da vida cristã estará, talvez, na arte de transportar as feridas como um sinal da nossa identidade, única e original. No dia de Páscoa, o Senhor apresenta-Se aos seus discípulos com as marcas da sua crucifixão, e eles reconhecem-No: do mais profundo fracasso, da morte mais ignominiosa, da maior angústia, emerge uma plenitude de vida e de graça. E que maior recriação haverá do que o perdão?

 

Os longos dias de verão podem suscitar em nós o cansaço e a sede do caminho; mas as suas frescas manhãs podem ser o sinal de um novo começo. «Concede o teu perdão àquele que foste ontem»; e segue o conselho de Macário, monge egípcio do século quarto, reparando nas suas palavras: «começa de novo»...

 

«Cada dia, desde que te levantas, começa de novo a viver em toda a virtude e nos preceitos de Deus, com grande paciência e misericórdia, no temor e amor de Deus e dos homens, com humildade de coração».

 

 

Texto: Rui Vasconcelos

Imagem: Filippo Rossi, 'Paupertas, Spes', 2012.

Descanso: direito ou dever?

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É claro que descansar é um direito. Uma pessoa não é uma máquina de trabalho. Aliás, como recorda S. João Paulo II, numa sua Encíclica, «o trabalho é para o homem e não o homem para o trabalho» (LE 6). Só assim o trabalho pode ser qualificado como humano, como um exercício de humanização.

 

O Concílio Vaticano II, que continua a ser a bússola que indica o norte para a Igreja atual, sublinha com clareza: «É preciso adaptar todo o processo de trabalho produtivo às necessidades da pessoa e às diferentes formas de vida; primeiro que tudo da vida doméstica, especialmente no que se refere às mães, e tendo sempre em conta o sexo e a idade. Proporcione-se, além disso, aos trabalhadores a possibilidade de desenvolver, na execução do próprio trabalho, as suas qualidades e personalidade. Ao mesmo tempo que aplicam responsavelmente a esta execução o seu tempo e forças, gozem, porém, todos de suficiente descanso e tempo livre para atender à vida familiar, cultural, social e religiosa» (GS 67).

 

Mas o descanso é muito mais que um direito. É também um dever. O descanso é uma questão de justiça social, de justiça familiar, comunitária. Quem vive num ritmo excessivamente acelerado de vida, por vezes estonteante, sem tempo para exercitar o dever de parar, de descansar, não está apenas a prejudicar-se a si mesmo, mas é fonte de nervosismo, impaciência e cansaço à sua volta. É como um carro sem travões, que só para e estaciona quando se esbarra contra um obstáculo.

 

Luís de Camões assim adverte num verso luminoso: «Não te canses que me cansas». Descansar não é abandonar-se à preguiça ociosa, ao não fazer nada egocêntrico. Descansar deve ser um exercício de caridade prática, de altruísmo amigo. Os outros precisam de mim descansado, relaxado, pacificado. Descansar é um verbo comunitário, um serviço assistencial, um presente de paz que ofereço a quem convive comigo.

 

Não é verdade que contactar com certas pessoas, em determinadas situações de cansaço, nos enerva, complica e esgota? Por outro lado, é um tempo ferial, uma prática de descanso pacificador encontrar pessoas que nos transmitem o oxigénio da paz e do repouso. Porque não considerar o descanso como um serviço social, um ministério apostólico?

 

O descanso é mais que um anexo da nossa agenda de afazeres, um pormenor insignificante da nossa personalidade. A arte de descansar define-nos. «Diz-me como descansas e eu te direi quem és», assim parafraseio o conhecido ditado popular. O descanso não é uma fórmula mágica de relaxação dos músculos e nervos, uma receita automática de um são ritmo biológico. É sobretudo um modo construtivo de encarar a vida, um clima de paz interior que se cultiva, um coração disposto a amar aconteça o que acontecer. O descanso que é mera evasão de nós próprios não leva a lado nenhum, é um beco sem saída. Assim, afirma um autor: «Quando não encontramos o repouso em nós próprios, é inútil procurá-lo noutro lado» (La Rochefoucauld). Advertindo que só em nós está a chave da solução, assim nota Fernando Pessoa: «É em nós que é tudo... Ali, ali, a vida é jovem e o amor sorri».

 

Não obriguemos ninguém a pagar a fatura do nosso cansaço enervante. Ofereçamos a todos o cheque do nosso descanso pacificador. Descansar é um dever caridoso, altruísta.

 

Manuel Morujão, sj