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Blogue do Apostolado da Oração

Profissionais da esperança

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Há presentes que todos podemos oferecer, por mais escassos que sejam os nossos recursos. Um tesouro, que não só podemos mas devemos sempre oferecer, é a esperança.

 

É certo que esperar é dos verbos de mais difícil conjugação, sobretudo quando acontece qualquer desgraça, como a dos recentes incêndios. Que fazer perante o cenário desolador de vidas e casas destruídas, da terra ensanguentada e queimada, como se o inferno do outro mundo tivesse imigrado para as nossas florestas e povoações? As lamentações nunca deram vida a coisa alguma, nem sararam feridas, nem construíram casas.

 

Como os amigos, a esperança é para as ocasiões. Para as noites escuras e os nevoeiros interiores, para as calamidades naturais e até sobrenaturais, para os reveses e insucessos, para os males sem remédio e os problemas angustiantes. Neste tipo de situações, precisamos de gritar, alto e bom som, a nós mesmos e aos outros: Vale sempre a pena esperar! Quem espera sempre alcança! Esperar contra toda a desesperança faz milagres!

 

A virtude da esperança é um tesouro caro. É preciso lutar para o alcançar. A esperança não é «a virtude dos fracos», como a desfigurou Nietzsche. Assim nos recordava o Papa Francisco: «A verdadeira esperança nunca custa pouco: passa sempre através das derrotas. A esperança de quem não sofre talvez nem sequer o seja. Não agrada a Deus ser amado como se amaria um comandante que arrasta o seu povo para a vitória aniquilando no sangue os seus adversários. O nosso Deus é uma luz débil que arde num dia de frio e de vento» (2017.05.24).

 

Que belo retrato nos faz Francisco da omnipotência de Deus, que é o poder do amor e não da força, que se solidariza com a nossa pequenez, para nos tornar grandes por dentro. Nesta linha, assim se refere à esperança Charles Péguy num seu poema: «A fé que mais amo, diz Deus, é a esperança… A esperança, diz Deus, essa sim causa-me espanto… Essa pequena esperança que parece não ser nada. Essa esperança menina… Só ela, guiando as outras, atravessará os mundos revoltos».

 

Todos deveremos especializar-nos em exercitar e oferecer esperança. A esperança é alavanca de um mundo melhor e de uma Igreja mais santa. É guindaste para levantar desilusões e pessimismos. É rampa de lançamento de projetos de solidariedade fraterna. É íman que nos atrai para construir o presente e preparar o futuro.

 

A nossa esperança não é de quem compra um bilhete de lotaria ou arrisca num jogo de azar. Não é a esperança de quem investe na bolsa ou faz prognósticos para um jogo de futebol. Tudo isso é tão falível. É uma esperança inabalável, porque assenta na fidelidade de Deus, como diz S. Paulo: é uma «esperança que não engana, porque o amor de Deus foi derramado nos nossos corações, pelo Espírito Santo que nos foi dado» (Rm 5, 5).

 

A história da desesperança dos discípulos de Emaús, depois da morte de Cristo, é paradigmática. Deles, como nos refere o Papa Francisco, «sai uma confissão que é um refrão da existência humana: “Nós esperávamos..., mas...”. Quantas tristezas, quantas derrotas, quantos fracassos existem da vida de cada pessoa. No fundo somos todos um pouco como aqueles dois discípulos. Quantas vezes na vida esperámos, quantas vezes nos sentimos a um passo da felicidade e depois ficámos desiludidos. Mas Jesus caminha com todas as pessoas desencorajadas que seguem por diante de cabeça baixa. E Jesus caminhando com elas, de maneira discreta, consegue voltar a dar esperança». Importa nunca desistir de esperar e de oferecer esperança.

 

O mundo à nossa volta será melhor se tu e eu formos profissionais da esperança.

 

 

Manuel Morujão, sj

 

 

Da Paciência

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«Digo-vos, pois:

pedi e ser-vos-á dado;

procurai e achareis;

batei e abrir-se-vos-á;

porque todo aquele que pede, recebe;

quem procura, encontra,

e ao que bate, abrir-se-á.» (Lc 11, 9-10)

 

Será a paciência a virtude que nos torna humanos? Será este o alimento mais indicado para a nossa vida, caracterizada por um longo e quotidiano caminhar? E será esta a mais nobre e necessária arte para a construção de uma casa, das relações, de um destino?

 

Um filósofo italiano, Giorgio Agamben, disse que «a arte de viver é a capacidade de nos mantermos numa relação harmoniosa com aquilo que nos escapa». Muita da nossa vida tece-se de provas que não escolhemos, de tempos que não definimos, de etapas e passagens cujas fronteiras não controlamos. A paciência associa-se frequentemente à dificuldade e até à desilusão. Mas não será a paciência uma arte positiva, destinada a construir e não apenas a suportar, a criar o novo e não somente a aceitar o presente?

 

Pedir, procurar e bater são movimentos que contêm em si a graça e a exigência da paciência. Pode ser que a paciência advenha da própria oração, e nos ensine a acolher os dons e bênçãos de cada dia, cuja seiva é bem mais fecunda do que todas as nossas projeções.

 

Precisaríamos, assim, de pedir a atenção, de procurar o discernimento, de bater à porta dos sinais. E o mistério de Deus poderia residir também aí, quando se abrem e alargam os limites estreitos da nossa visão e do nosso desejo.

 

Texto: Rui Vasconcelos

Imagem: Kazimir Malevich, 'White on White', 1918.

 

 

 

Coisas que a minha avó me ensinou

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Há um ano, acompanhei o corpo da minha avó até ao cemitério. Estava um dia quente, invulgar para outubro, se pensarmos nos típicos outonos que vivíamos há dez anos. Nunca mais me vou esquecer desse dia. Foi uma perda gigante, um golpe duro na unidade da família.

 

Sempre vi os meus avós juntos, raras eram as situações em que se separavam fisicamente um do outro. Essa constância foi sempre uma garantia, uma espécie de fio condutor num trajeto familiar com os seus naturais altos e baixos.

 

Assustou-me a rapidez com que ela partiu. Vi na cara do meu avô que também ele ficou espantado (atrevo-me a dizer que até ficou um pouco zangado). Como foi possível ela ter morrido assim, de uma hora para a outra?

 

O choque trouxe a tristeza e a tristeza um silêncio vazio. Mas nesse silêncio, recordei a voz da minha avó, o seu olhar, a sua mão pesada e treinada, que me mostrava como elevar a massa do pão de ló da cor da gema, amarela e húmida, até à cor da casca de ovo, branca e seca. Reparei nas expressões que passei a usar, frases que me vinham à cabeça ditas por ela, gestos e posturas. Como se o meu corpo não se quisesse esquecer, como se o meu cérebro se agarrasse a tudo o que lhe dizia respeito para a colocar no meu pensamento.

 

Penso que compreendi porquê. Hoje, temo mais pela vida do meu avô, penso mais nele, preocupo-me mais em estar com ele, tal como todos os seus filhos e netos. Neste fervilhar em volta do meu avô, envolvidos no seu cuidado, vi a vida dela consagrada em nós, seus descendentes. Vi-nos cumprir o nosso propósito, tal como a minha avó fez toda a vida: cuidar dos mais frágeis e dos mais velhos.

 

"Cuidar dos mais frágeis e dos mais velhos" aplica-se não só às pessoas idosas, mas também à calamidade que se abateu sobre a floresta portuguesa, descuidada pelas leis, maltratada pelos seus cuidadores. Não nos podemos esquecer que a nossa passagem na Terra é curta e que devemos criar condições para que as gerações futuras vivam num planeta saudável. Sem árvores, sem animais, sem recursos naturais, não seremos mais Portugal, seremos um amontoado de cinzas à beira-mar, como se fôssemos uma nação em guerra civil, a matar os mais frágeis e indefesos. Paremos para sentir a dor da perda, mas não esqueçamos o nosso dever de cuidar do meio ambiente.

 

Maria Betânia Ribeiro

 

Rancor, vingança e telenovelas

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O rancor é uma aversão funda a alguém, muitas vezes motivada pela dor que essa pessoa nos causou por querer ou mesmo sem querer. Depois essa dor cresce dentro de nós, é alimentada por nós e esse sentimento transforma-se em rancor, um sentimento que nos corrói.

 

Há pessoas que nos magoam de propósito. Provocam-nos uma ferida e nós ficamos a pensar naquilo sem termos desejo de nos libertamos daquele pensamento. E é essa ausência de desejo de nos libertarmos do pensamento que nos magoa que nos provoca o rancor. Ficamos agarrados ao pensamento que nos magoa; não fazemos nada para nos libertarmos dele e a dor vai-se adentrando, vai começando a roer lá dentro, vai-nos causando uma má disposição que emerge de tempos a tempos. Devemos distinguir esta situação daquela em que uma ferida é impedida de fechar devido à dor infligida permanentemente. É uma situação diferente cuja explanação não é para aqui.

 

E há pessoas que nos magoam sem querer. Há pessoas cujo bem-estar, cuja riqueza – ou qualquer outra coisa – nos magoa e se essa dor é alimentada por nós transforma-se em rancor. Há pessoas que vivem permanentemente feridas com o bem-estar alheio. Às vezes dentro da própria família. Uma vez ouvi uma pessoa dizer que quando vê um carro de luxo se lembra sempre de traficantes de droga. É a inveja disfarçada. É o rancor a sair cá para fora. A condição da dor se transformar em rancor é a pessoa sentir-se bem com essa dor. O rancor tem alguma coisa de masoquismo. A pessoa quer continuar a pensar na causa daquela dor. E assim o rancor vai-se transformando em azedume, vai tirando paz e mansidão ao coração, vai semeando a cizânia.

 

O rancor evita-se com alegria no coração. Uma pessoa alegre é menos propensa ao rancor. E à alegria no coração chega-se com a realização consigo próprio. Uma pessoa insatisfeita é muito mais propensa ao rancor. Uma coisa é nós sentirmos falta disto ou daquilo – até de certas qualidades – outra coisa é vivermos amargurados com isso. Devemos concentrar-nos numa vida realizada, numa vida feliz, numa vida cheia.

 

Mas para o cristão uma vida não é cheia sem Deus. Nós não afastamos o rancor com um truque psicológico. Afastamos o rancor com a oração, afastamos o rancor com a identificação com Deus, afastamos o rancor amando. Temos de pedir a Deus que nos transmita o seu amor e amar aquele que nos fere rezando por ele, em vez de mantermos a ferida aberta.

 

Gonçalo Miller Guerra, sj

 

 

A “correção filial” a Francisco: o que se passa na Igreja?

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Não é novidade na história da Igreja que o magistério dos Papas seja contestado por grupos de cristãos ou de teólogos. Para não ir mais atrás, vemos que os pontificados de Bento XVI e João Paulo II tiveram também os seus críticos. E não há problemas de maior em relação a isso, é um facto que testemunha a diversidade e a riqueza dentro da Igreja, quando estes assuntos não tocam o fundamental das verdades da fé. E que é, digamos de início, o caso presente. Não está em questão uma verdade de fé, mas sim uma proposta de discernimento pastoral. Mas, no caso desta “correção filial” por parte de um grupo de teólogos feita ao Papa Francisco a propósito da sua Exortação Apostólica “A Alegria do Amor”, o tema tem levantado mais alarido, por uma questão muito séria: é uma correção de heresias que se propagam e que foram produzidas pela mesma Exortação. Falar de “heresia” num contexto destes põe-nos em alerta, pois é exagerado. “Alegria do Amor” não é um documento dogmático, importa não confundir as coisas. E isso leva-nos então a perguntar: o que se está a passar?

 

Num esclarecedor artigo publicado há dias pelo Professor João Duque, no site da Arquidiocese de Braga, afirma-se que a questão de fundo aqui presente é a convivência de paradigmas teológicos muito diferentes e que é importante não colocar a questão a partir de divisões simplistas entre “conservadores” e “progressistas” ou quem gosta mais ou gosta menos do Papa Francisco. A questão não são simpatias pessoais ou as várias formas legítimas de estar na Igreja, com maior ou menor confronto. A questão aqui, a meu ver, é o modo como o magistério da Igreja se tem vindo a propor aos cristãos na sua vida concreta e a difícil desacomodação que isso tem trazido em vários setores da Igreja.

 

Aparece aqui a diferença que marca o pontificado de Francisco, numa categoria verdadeiramente essencial para entender as suas posições e propostas, as suas palavras e os seus gestos. Francisco move-se no paradigma da Misericórdia e as consequências práticas que este tem na vida da Igreja e do mundo. Um dos aspetos que decorre deste paradigma é o apelo ao discernimento das situações concretas. E é aqui, a meu ver, que entra a divisão: o verdadeiro discernimento não acontece quando tudo é preto ou branco, mas sim quando se assume a vida como uma multiplicidade de tons muito diferentes. Naturalmente, isto causa desconforto e algum desconcerto: “Quais são os critérios? Até onde se pode ir? Como se protege o essencial da norma?”. São questões que fazem todo o sentido e é obrigatório e honesto colocar... mas têm de se colocar! Mais fácil é tomar a posição fechada de “nisto não se pode tocar e ponto final”, fechando-se à partida ao exercício de colocar questões e, mais difícil ainda, experimentá-las no seu drama único e fascinante: a vida humana.

 

Não estará a ser pedida à Igreja, desde os principais representantes do magistério, até aos simples fiéis, uma abertura de espírito e de coração àquilo que, no fim de contas, é a única missão da Igreja: ser “sinal, e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano”? (LG 1) E que este sinal é sinal de reconciliação, de perdão, de vida, de autenticidade e coerência com Cristo e o seu Evangelho? O discurso da Misericórdia e as suas inquietações sempre causaram perturbação, é a história de Cristo e a dos grandes santos.

 

Acolhamos com generosidade o momento presente. Não tenhamos medo da misericórdia. E demos contínuas graças a Deus pelo dom da novidade que Francisco tem trazido à Igreja, rezando por ele e pela sua missão de Pastor universal.

 

António Valério, sj