O Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida viabilizou, estes dias, o pedido de uma família no sentido de um embrião gerado “in vitro” ser implantado no útero da avó, dado que a mãe teve de retirar o útero por motivos clínicos. A decisão confirma um parecer da Ordem dos Médicos, emitido alguns dias antes. Esta é a primeira vez que, em Portugal, é aprovada uma gestação de substituição.
A decisão é polémica? Ou o tema que ela envolve é que é polémico? É possível pensar em tolerar uma situação de gestação de substituição quando ela é gratuita (como é o caso)? Ou essa é uma hipótese que nem se deve colocar?
O que leva alguém a querer ser mãe biológica se não tem um útero que permita gerar um filho? O que leva alguém a aceitar ser pai biológico se a esposa não tem útero e se o embrião tem de ser implantado noutra pessoa? O que leva alguém a aceitar gerar um novo ser, que devia apenas ser seu neto e acaba por ser neto e “meio filho” ao mesmo tempo?
Sim, porque mãe não é apenas aquela cujo óvulo, juntamente com o esperma, dá origem a um bebé. Mãe é também aquela que gera o filho no seu seio, cujos cuidados durante a gravidez são fundamentais para o desenvolvimento do feto. É aquela que sente o corpo modificar-se à medida que a gravidez avança, aquela que não fica indiferente quando sente um pontapé na barriga ou um movimento mais brusco do feto.
Não é possível separar gestação e maternidade. Não é o corte do cordão umbilical que marca a passagem de uma para a outra. A maternidade começa efetivamente na gestação da criança e envolve uma série de vivências e sentimentos que acompanham a gravidez, o nascimento e o crescimento do bebé.
A decisão agora viabilizada (e outras semelhantes que venham a surgir) não será uma questão de egoísmo, baseada no suposto interesse daqueles que querem ser pais, mas efetivamente não têm condições biológicas para tal? Ela tem em conta o interesse da criança que vai ser gerada? E se alguma coisa não correr bem durante a gravidez? Como se explica depois à criança que ela foi gerada na barriga da avó, que é também qualquer coisa como “meia mãe”?... No mínimo é algo estranho!
Esta decisão do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida é tão só o espelho de uma sociedade que vai deixando morrer valores e princípios que respeitam o ser humano, desde a sua conceção até à morte natural. Uma sociedade que se vai desmoronando e parece caminhar sem rumo, à mercê da vontade de uns quantos políticos que vão aprovando legislação em defesa de uma suposta liberdade de todos. É, afinal, uma decisão que mostra o desnorte da sociedade em que vivemos.
Perante este cenário que se vai desenhando, que lugar queremos ocupar neste tipo de sociedade? Pactuamos, através do silêncio, da omissão e da indiferença, com esta falta de rumo? Ou procuramos ter uma postura ativa e ser uma voz que denuncia situações como esta?
Sendo fiéis aos princípios em que acreditam, os cristãos devem marcar a diferença e usar os meios que estiverem ao seu alcance para mostrar o descontentamento que sentem relativamente a realidades como a gestação de substituição. Cada um saberá o caminho que pode e deve traçar.
A Síria e o Iraque viveram anos trágicos às mãos dos vários jihadismos em confronto na região e também às mãos de governos ditatoriais ou corruptos e sectários. Nos últimos meses, porém, começou a ser evidente que o Estado Islâmico – o bando jihadista mais notório e bem sucedido nas últimas décadas – estava a caminho do fim, enquanto poder de facto, no terreno. A tal ponto que, nos últimos dias, os governos da Síria e do Iraque puderam proclamar vitória na luta contra o Estado Islâmico – e o Irão veio reivindicar a parte de leão nessa vitória; com alguma razão, diga-se de passagem, pois se alguém tirou vantagem das mudanças cataclísmicas ocorridas no Médio Oriente foi, além da Rússia, a potência persa.
No terreno, entretanto, as populações deslocadas pela guerra estão, em muitos casos, a ser silenciosamente substituídas por outras: na Síria, as milícias shiitas – financiadas pelo Irão e vindas do Iraque, do Irão, do Afeganistão – ocupam territórios outrora de maioria sunita e por lá irão ficar, com armas e bagagens; no Iraque, por seu lado, os cristãos, uma das minorias que mais sofreu com a guerra, encontram imensos obstáculos quando tentam regressar às aldeias e vilas de onde o Estado Islâmico os forçou a fugir.
É de prever que muitas das comunidades cristãs desenraizadas pela guerra – parte delas mais antigas do que as mais antigas existentes na Europa – nunca mais se consigam recompor nem recuperar as aldeias e vilas onde viveram até 2014. Assim está a acontecer na planície de Nínive, uma das poucas regiões do Iraque onde, antes da chegada do Estado Islâmico, ainda se mantinha uma presença significativa de comunidades cristãs.
Quase invisíveis e praticamente ignorados durante a guerra, os cristãos do Iraque e da Síria ficarão ainda mais ignorados e invisíveis agora que se anuncia a «paz». E, assim invisíveis, poderão extinguir-se «em paz», enquanto no Ocidente nos entretemos a dar caça à islamofobia e a outras fobias mais imaginárias do que reais, mas muito do agrado da intelectualidade reinante.
“São ricos e têm sucesso, mas sentem-se sós”, leio em cabeçalho de notícia. Fico a pensar em memórias recolhidas e ouvidas ao longo da vida. A pensar naquela pessoa amiga que tinha tudo, só não tinha saúde para desfrutar daquilo tudo; a pensar no desabafo daquele recém-formado estudante universitário, filho único de pais muito ricos (no caso um industrial), mas com vazio e solidão interiores: “Olhe, padre, tenho fortuna que chegue para a minha vida, mesmo sem 'fazer puto' (expressão sua), e ainda sobra para os meus filhos e netos, se os vier a ter”. Fico a pensar naquela resposta do Presidente Kennedy a quem lhe pediu opinião sobre a juventude americana do seu tempo: “Tem tudo. Só lhe falta uma coisa, mas infelizmente ‘essa coisa’ é a única importante e necessária”.
Estou a escrever estas notas em terras alentejanas, onde as lonjuras se perdem mergulhadas no silêncio e muitas vezes na solidão. Mas a frase foi pronunciada em Lisboa na recente “Web Summit” (“Uma espécie de feira de gente com ideias com gente com dinheiro”, escreveu alguém), e em entrevista naquele mundo das altas tecnologias e das inteligências artificiais a que chamam pomposamente “Startups”. Outras solidões, portanto, que não necessariamente a alentejana. E foi pronunciada por uma das altas figuras do conhecimento, da inovação e da criatividade que foram passando pelos palcos do “Altice Arena”.
Estamos de facto no mundo dos ricos e do sucesso mas que, por si, não resolvem necessariamente os problemas da solidão humana. Estamos no terreno dos algoritmos, terreno tão distante das operações simples do “somar e diminuir”, do “multiplicar e dividir” onde vive o homem comum, o homem “de carne e osso” na expressão querida de Unamuno. Aqui soma-se e diminui-se, multiplica-se e divide-se; aqui os que têm “mais” ainda vão dando aos que têm “menos” e os que sabem multiplicar ainda vão dividindo (partilhando) com os desafortunados da sorte. Aqui ainda se “divide” a herança recebida dos pais com a expressão “fazer as partilhas”; aqui ainda se diz “Divide lá isso comigo” e “Vamos dividir isto por todos”. Aqui ainda se fala dos “nossos semelhantes” com possibilidade de sermos todos irmãos e filhos do mesmo Pai. Se quisermos, claro. Ou formos capazes, evidentemente.
O Adão do livro do Génesis também tinha tudo mas estava só. Faltava-lhe alguém “semelhante a ele” para poder exclamar: “Esta é verdadeiramente osso dos meus ossos e carne da minha carne”. Faltava-lhe Eva para não continuar “só” no meio de tanta coisa e de tantas aves e tantos animais à sua volta; faltava-lhe companhia para poder “crescer” realizando-se como pessoa e para poder “multiplicar-se” construindo a sua história com novas histórias; faltava-lhe companhia para poder guardar e proteger aquele jardim que o Senhor viu ser bom e belo e lhes entregou para que o tratassem e cuidassem bem em benefício de todos. Afinal, faltava-lhe alguém com quem pudesse somar e diminuir, multiplicar e dividir. Faltava alguém “semelhante a ele” para, com esse alguém, poder ser “a imagem e semelhança de Deus” que é Amor. Tinha aparentemente tudo, só não tinha ninguém para amar e ser amado.
“Senhor, dai pão aos que têm fome e fome aos que têm pão” era a oração que o P. Américo gostava de fazer com os seus rapazes da rua. Oração que neste momento faço minha pelos ricos deste mundo (ricos por fora, mas com muito vazio por dentro), já que para os pobres, (“os pequeninos” do Evangelho) apenas peço, com a oração do Pai-Nosso, “o pão de cada dia”. Nem “mais”, nem “menos”. Chega e sobra.
Num mundo que parece cada vez mais agitado, barulhento, em stress desgastante, com muito barulho dentro e fora de nós, parece necessário cultivar mais o silêncio, a paz interior, encontrarmo-nos a nós mesmos e encontrar Deus fonte da paz e da serenidade.
Este apelo chegou a mim, de um modo muito veemente com o livro “Deserto na cidade”. O autor propõe-nos fazer deserto dentro de nós para nos encontrarmos com Deus, o Deus que fala no silêncio. O deserto não é um lugar, mas um estado interior que quer comunhão e intimidade com Deus, com a fonte da paz e da felicidade, da alegria e da graça. Fazer deserto dentro quando à nossa volta há barulho na vida, no trabalho, na cidade, no metro, etc. Aprender a arte do silêncio interior, de um recolhimento que nos dá paz e serenidade, que nos abre ao diálogo, que nos deixa escutar Deus, ouvir os murmúrios do Espírito, a voz do deserto, a paz que nos segreda e nos faz entrar nos mistérios do amor de Deus uno e trino. E neste silêncio até a oração se vai transformando, cada vez com menos palavras, menos pensamentos, mais escuta e comunhão. Deserto na cidade, na vida quotidiana, em casa, na rua, nas compras, no trabalho. No meio do reboliço e da multidão, recolher-se dentro do coração onde Deus está, como num sacrário. E aí entrar em comunhão permanente, mesmo sem palavras.
Tive a graça de encontrar agora outro livro, que me foi oferecido por uma pessoa amiga, da autoria do Cardeal Robert Sarah, que tem por título “A força do silêncio”. Páginas maravilhosas que nos convidam, neste mundo agitado e atribulado, a fazer uma cela no coração e estar com Deus. E esse silêncio não é egoísmo, é necessidade imperiosa para se conseguir equilíbrio, serenidade, fecundidade apostólica, força interior capaz de vencer dificuldades, tentações, nervosismos, stress.
Com a leitura dessas preciosas páginas, entendemos melhor porque Jesus ia para o monte para estar com o Pai e rezar, ia para o deserto para Se encontrar a Si mesmo e mergulhar no oceano infinito do amor do Pai. Percebemos melhor que sem silêncio interior diz-se orações mas não se faz oração verdadeira que leve à comunhão com o Amado, que nos mergulhe na intimidade do amor trinitário, que nos faça contemplativos na ação, na vida. Não no silêncio do convento, do mosteiro, dos claustros, mas no interior de nós mesmos, onde encontramos Deus e o seu amor, onde descobrimos que somos um sacrário divino da sua presença, onde podemos crescer na intimidade com Jesus e com a Trindade.
Uma dona de casa, que nas suas lides domésticas descobre a riqueza e a força deste silêncio, pode ser contemplativa e fazer do dia uma contínua comunhão com o Senhor, várias horas santas na intimidade com Jesus, enquanto passa a ferro, faz as refeições, etc. Um lavrador, em contacto com a natureza, em cima do seu trator ou de enxada na mão, pode ser contemplativo se descobre Deus no seu coração e na natureza que o rodeia e está sempre no esforço amigo de maior comunhão. E assim por diante: o estudante, o médico, o empregado da fábrica, etc. Todos os cristãos que descobrem o valor do silêncio e os seus frutos, a “sua força”, não querem outra coisa, não pensam em viver de outro modo, não desejam mais nada. Estar com o Amado, no silêncio recolhido do coração, fazendo deserto na cidade.
E parece que a vida se torna mais serena, mais feliz, mais alegre, mais pacífica, mais fecunda em dom e em graça, sobretudo na ação apostólica. E o Espírito que está no coração de cada um e de cada uma, nos ajudará a descobrir a graça do deserto interior, a graça do silêncio fecundo, pois no encontro mais permanente com Deus somos mais fortes, mais evangélicos, mais cheios da graça que é dom que nos transforma.
O Espírito, através dessa experiência do “deserto na cidade”, com a “força do silêncio”, nos fará perceber que o mundo é presença do Deus Criador, é lugar sagrado, é lugar contínuo de comunhão com o amor do Pai. E tudo, mesmo o ruído e o barulho, nos pode levar até Ele.