O poeta e tradutor Armando Silva Carvalho – que nos deixou recentemente – propõe-nos no seu livro A Sombra do Mar estes versos de forte significado:
«Concede o teu perdão àquele que foste ontem
e não te conhece hoje debaixo do chuveiro.
(...)
A verdade é só uma, o que tu foste ontem
já não te conhece».
Recomeçar a cada dia constitui uma arte difícil. Transportamos no nosso seio as angústias pelo futuro que imaginamos, e em nós carregam-se as experiências do passado, muitas vezes amargas. Por vezes parece que nem merecemos uma nova oportunidade: já não vale a pena acreditar. Aqui se revela a importância vital que possui a Esperança na nossa vida: ela é o alimento que permite confiar e acreditar no presente e no futuro, apesar de tudo. Por isso outro poeta, Charles Peguy, declarava que a Esperança espanta o próprio Deus.
Não se trata de começar do zero: pertence ao próprio Deus, e a Ele unicamente, o criar a partir do nada. Somos o que a história nos fez e o que nela construímos e desconstruímos. O sinal maior da vida cristã estará, talvez, na arte de transportar as feridas como um sinal da nossa identidade, única e original. No dia de Páscoa, o Senhor apresenta-Se aos seus discípulos com as marcas da sua crucifixão, e eles reconhecem-No: do mais profundo fracasso, da morte mais ignominiosa, da maior angústia, emerge uma plenitude de vida e de graça. E que maior recriação haverá do que o perdão?
Os longos dias de verão podem suscitar em nós o cansaço e a sede do caminho; mas as suas frescas manhãs podem ser o sinal de um novo começo. «Concede o teu perdão àquele que foste ontem»; e segue o conselho de Macário, monge egípcio do século quarto, reparando nas suas palavras: «começa de novo»...
«Cada dia, desde que te levantas, começa de novo a viver em toda a virtude e nos preceitos de Deus, com grande paciência e misericórdia, no temor e amor de Deus e dos homens, com humildade de coração».
Hoje temos o último artigo de três sobre o hino da caridade.
O tema de hoje é este: «Se perdoar não implica ficar amigo, como é que podemos amar os inimigos?».
Primeiro, temos que distinguir várias situações. Há aquelas em que uma pessoa nos ofende, com maior ou menor gravidade, mas a ferida que a ofensa deixa fecha e a relação com essa pessoa continua boa.
Eu vou falar de duas outras situações.
A primeira é aquela em que a ferida custa muito a fechar por ser uma ferida muito grande. É uma ferida tão grande que faz com que não queiramos pensar nessa pessoa, quanto mais perdoar, muito menos amar. Temos ódio à pessoa.
Então como é que vamos amar esta pessoa?
Primeiro, temos que deixar o tempo atuar. O tempo ir-nos-á suavizando as sensações más. Neste caso, a primeira coisa que Deus nos pede é que não alimentemos ódio nem vingança em relação à pessoa. Pede-nos que nos esforcemos por não dizer coisas como: “Só quero que te aconteça o mesmo mal que me fizeste” ou “só te desejo aquilo que me desejas”. Se nos esforçarmos por não pensar estas coisas, já estamos no bom caminho. Depois, pedimos a Deus vontade de rezar por essa pessoa.
Reparemos que ainda não estamos a rezar pela pessoa, mas a pedir vontade de rezar por ela. Esta fase pode demorar muito tempo. Anos. Mas o importante é não desistirmos de pedir a vontade de rezar pela pessoa. Quando conseguirmos rezar por essa pessoa já estamos, como Jesus na cruz, a rezar por aqueles que Lhe fizeram mal. Nunca iremos achar essa pessoa simpática nem convidá-la para nossa casa. Mas, se formos capazes de rezar por ela, já a estamos a amar. Já estamos a amar o «inimigo».
A outra situação é aquela em que a ferida não fecha por estarmos sempre a ser magoados.
Aqui, a primeira coisa a fazer é distanciarmo-nos da pessoa que nos faz mal. Temos que manter essa pessoa à distância. Não vale a pena tentarmos fazer as pazes com uma pessoa destas. Ou a pessoa se nos ri na cara ou é muito simpática mas não muda o seu comportamento. Nos dois casos, acabamos ainda mais magoados.
Temos que a manter à distância. E como é que isso é amar?
É amar porque estamos a impedir a pessoa de pecar. Impedir alguém de pecar é amar esse alguém. Se alguém me vier assaltar a casa e eu lhe abrir a porta e lhe der as joias e o dinheiro, estou a ser cúmplice dessa pessoa.
Assim, também, se alguém me magoar sempre que está comigo e eu não me procurar afastar dessa pessoa, estou a dar a essa pessoa oportunidade de me magoar. Estou a ser cúmplice do seu ato, estou a contribuir para o seu pecado.
Mesmo sendo pessoas do nosso convívio habitual ou membros da nossa família, é preciso afastarmo-nos destas pessoas ou afastá-las de nós, porque não lhes podemos dar oportunidade para nos estarem sempre a magoar.
Então, aqui a primeira parte do amor é não dar às pessoas oportunidade para elas pecarem. Depois, vem a outra parte, que é rezar por essas pessoas. E é tudo o que podemos e devemos fazer por elas.
Concluindo: devemos afastar-nos das pessoas que nos magoam e, quando formos capazes, rezar por elas. Não temos que, nem é possível, achá-las simpáticas.